A CHINA NÃO É O PAÍS DAS MARAVILHAS

A CHINA NÃO É O PAÍS DAS MARAVILHAS

O júbilo equivocado com a grandeza absoluta das taxas do crescimento chinês se deve a uma ilusão óptica

Robert Kurz

Presa à atualidade, a memória média de curto tempo só conhece o discurso que acaba de ser feito. As modas e as conjecturas não têm história. Também na discussão acerca do desenvolvimento econômico do mundo os áugures estão como que a postos para mastigar o tema anunciado no momento, que de repente emerge em toda a parte, em total semelhança com os jovens que no mundo inteiro passam subitamente a usar o mesmo tipo de calça e a ouvir o mesmo tipo de música. Se não fizermos parte disso e observarmos as modas e os discursos a uma certa distância, então nos chamará a atenção que determinados padrões se repetem de maneira quase estereotipada. O capitalismo já não produz mais nada de realmente novo, nem para as calças nem para a teoria econômica. Como na arte e na cultura, só resta a reciclagem. O retorno periódico dos mesmos padrões tem algo a ver com o fato de estar exaurida a substância capitalista, o sistema global do "trabalho" em empresas. É preciso afirmar incessantemente: não há nenhum novo modelo de acumulação e de regulação que possa sugar em escala global novas massas de força de trabalho. Porém, onde não existe mais nenhum desenvolvimento substancial nesse sentido, as criações intelectuais só podem girar em círculos.

Bolhas financeiras

Em nenhum terreno isso é tão evidente quanto no da discussão econômica. Aqui o espírito é de imediato o espírito do próprio capital, e é por esse motivo que ele se encontra hoje particularmente enfraquecido. Onde não há nada, nada pode ser descoberto. O crescimento não tem mais nenhuma base real, só tem lugar ainda no plano virtual, na figura das bolhas financeiras. No fundo, todos os debates econômicos se referem a esse estado de coisas, seja confessa ou inconfessadamente. Uma nova e histórica onda portadora de crescimento global somente pode ser discutida no subjuntivo, na qualidade de mera alternativa. Precisa-se dessas alternativas para se encontrar no plano secundário dos mercados financeiros uma espécie de justificação das reiteradas bolhas financeiras. A miragem de um novo fator de crescimento real no mundo tem de ser posta no discurso, de modo que a formação de bolhas nos mercados financeiros, estendendo-se e retraindo-se à maneira de uma sanfona, pareça um prenúncio e um elemento real de uma nova onda de crescimento substancial. Assim que uma semelhante possibilidade se revela um fiasco, as bolhas financeiras encolhem e volta a surgir a necessidade de fazer aparecer no discurso, num passe de mágica, uma outra alternativa. Mas o acervo de fantasias não é especialmente vasto. Na realidade, só há duas possibilidades para um novo surto de crescimento global. Ou por uma expansão espacial, geográfica, isto é, por um salto descomunal de crescimento capitalista na periferia do mercado mundial, ou por uma inovação tecnológica nos próprios centros do capital, capaz de criar uma nova "onda longa" de crescimento e prosperidade. Dependendo da opção favorecida no discurso, o capital monetário das bolhas financeiras flui mais forte rumo às "bolsas-limiar" da periferia ou, inversamente, rumo aos assim chamados "valores de tecnologia" das bolsas centrais. No começo foi a ascensão aparentemente interminável do Japão que produziu a idéia de um deslocamento geográfico do centro de gravidade do crescimento global, dando asas à imaginação dos otimistas profissionais. Como se sabe, no final dos anos 80 foi proclamado o "século do Pacífico", com o Japão no papel da pretensa nova potência econômica mundial e com os "pequenos tigres" do sudeste asiático como seu séquito. Contudo, já em 1990, depois do maior crash acionário de todos os tempos, a magnificência japonesa era coisa do passado; e poucos anos mais tarde também os tigres asiáticos iriam cair de joelhos. Na segunda metade dos anos 90, os gurus da melhora econômica pegaram outro bonde, adotando as concepções tecnológicas de uma nova "onda longa". Sem dúvida, há muito tempo se constata que a revolução tecnológica da microeletrônica, em vez de vencer a crise global, acaba a intensificando devido aos seus potenciais -jamais efetivados- de racionalização. Mas por essa época se procurou colorir determinadas subtecnologias, aplicações e produtos de consumo, tomando-os como fiadores do "capitalismo do futuro". De súbito foram as indústrias da internet e da telecomunicação que iriam inaugurar uma nova época de ocupação, crescimento e prosperidade. No entanto, tão rápido quanto foi aclamada, a época grandiosa da fundação da "new economy" terminou com um desastre ainda maior que o pretenso "século do Pacífico".

Imaginação esgotada

Desde então a imaginação parece estar esgotada em definitivo, pois recentemente o discurso das esperanças e das alternativas, que havia muito andava de muletas, retornou a duras penas à Ásia e, desse modo, mais uma vez à idéia de uma locomotiva regional ou específica de alguns países, destinada a puxar o crescimento global. Agora, de repente, é a China que deve trazer o que o Japão não trouxe. Seja como for, há alguns meses a imprensa econômica internacional vem celebrando em uníssono a "dinâmica chinesa", de maneira tão enfática como outrora a dinâmica japonesa. Enquanto o Ocidente luta com a recessão, é o que se diz, a China se ergue impetuosa.

Em 2001 houve um farto crescimento de 7,6% , bem acima da média global, e em 2002 a China atrairá, com os cerca de 50 bilhões de dólares dos EUA à frente, a maior fatia dos investimentos globais no exterior. Como se sabe, graças ao punho de ferro da ditadura política, a força de trabalho chinesa é incomparavelmente barata, deixando exaltados os empresários do mundo todo. E já se calcula que o pretenso novo "milagre" durará anos e mesmo décadas: a China estaria no melhor caminho de se tornar a "oficina do mundo", como outrora a Grã-Bretanha, dizem de boca cheia os comentaristas alemães e norte-americanos em seus prognósticos. As esperanças verdejam de novo: uma China "próspera" será a campeã de compras no Ocidente, voltará a puxar para cima os tigres asiáticos e, de modo geral, a economia mundial, dando a nós todos um exemplo de ascensão por meio de diligência e frugalidade.

Embora já tivéssemos provado esse molho ideológico adocicado a ponto de enjoar, devemos voltar a ele justo com a China. Na realidade, o cálculo é bem menos correto do que no caso da alternativa japonesa, 15 anos atrás. As condições da China para um grande salto à frente na economia mundial do século 21 são muito mais miseráveis do que eram no Japão, cuja base industrial pelo menos fora estabelecida já no século 19, em semelhança com a européia, ao passo que o ponto de partida da China na segunda metade do século 20 se encontrava no nível do Terceiro Mundo. A distância atual em relação às potências capitalistas centrais é francamente desesperadora.

É preciso ler corretamente as estatísticas, visto que elas só expressam algo de maneira relativa. Desse modo, o júbilo equivocado com a grandeza absoluta das taxas do crescimento chinês se deve a uma ilusão óptica. Pois elas só são altas assim por conta do nível inicial extremamente baixo, em analogia com os tigres asiáticos anos atrás e, de resto, com todos os "portadores da esperança" anteriores do Terceiro Mundo. Toda vez ia a pique, em poucos anos, o crescimento que os animadores do capital financeiro haviam estimado de modo angelical, porque a brecha para alcançar o padrão de produtividade global não era possível devido à força escassa de capital e, por conseguinte, o limiar de um desenvolvimento realmente intensivo não podia ser ultrapassado. De fato, mesmo as taxas do crescimento chinês, por mais altas que pareçam atualmente, já caíram pela metade desde o princípio dos anos 90.

Assim como o nível absoluto das taxas de crescimento, a grandeza absoluta do produto interno bruto não é um indicador de que um país como a China possa abrir as portas para o Primeiro Mundo e menos ainda que possa se tornar a locomotiva do crescimento global. Naturalmente só a massa de 1,3 bilhão de seres humanos resulta em um produto social absoluto imenso. Mas isso e a quantidade de "hands", de força de trabalho disponível, já não importam mais sob as condições da globalização e do padrão da produtividade microeletrônica. Em princípio, e mais ainda no contexto da terceira revolução industrial, apenas a criação relativa de valor, o produto social per capita, constitui a régua para medir a situação e as perspectivas do desenvolvimento econômico. E nesse aspecto o ranking da China fica bem abaixo. Se em 2000 o PIB per capita chegava ainda a US$ 35.620 no Japão em crash, a US$ 34.100 nos EUA e a US$ 25.120 na Alemanha, na China ele está em deploráveis US$ 840, ou seja, praticamente o mesmo que em Honduras (US$ 860), a metade da taxa da Jordânia (US$ 1.710) ou do Irã (US$ 1.680) e um quarto da taxa do Brasil (US$ 3.580).

Centro e periferia

Por esses números fica visível o verdadeiro abismo entre o centro e a periferia. Nos países ocidentais e no Japão, no nível do padrão tecnológico, um crescimento real, que deveria mover a criação de valores e mercadorias em ordens astronômicas de grandeza, quase não é mais possível; justamente por esse motivo haviam se formado em seu lugar as bolhas financeiras. Na periferia, ao contrário, mesmo as altas taxas de crescimento absoluto só podem mover uma massa de valores e de mercadorias relativamente mínima, de pouco peso no plano global. É por isso que a China jamais poderá se tornar no século 21 a "oficina do mundo", como a Grã-Bretanha no início do século 19. A industrialização chinesa atual, voltada à exportação, não se baseia, diferentemente da britânica daquela época, em uma tecnologia superior própria, mas somente em baixos salários. A "profundidade da produção" independente é ainda bem menor do que nos tigres asiáticos. Por conta disso, o know-how e até uma grande parte dos componentes da produção têm de ser importados a altos preços. Tudo computado, não resta quase nada de saldo positivo para a própria China. Sessenta por cento das exportações baseiam-se apenas nos investimentos diretos de firmas ocidentais e japonesas na China, as quais abastecem a partir de lá os seus próprios mercados e o resto do mundo. Dessa maneira, a China não está abrindo as portas para o Primeiro Mundo; pelo contrário, ela está sendo degradada ao maior quintal de salários baixos do mundo. Em razão disso, nenhuma importação de mesma classe pode se contrapor às exportações chinesas. Ao contrário, são importados sobretudo os componentes para a exportação e para a infra-estrutura, raramente bens de consumo. Na verdade, tanto quanto os já defraudados "milagres" asiáticos anteriores, o suposto "milagre" chinês vive apenas dos desequilíbrios e dos déficits globais, principalmente da rua de mão única da exportação para os EUA através do Pacífico, ou seja, dos prolongamentos da economia baseada em bolhas financeiras e dos déficits gigantescos norte-americanos. À medida que os consumidores superendividados dos EUA vierem a perder finalmente o fôlego, a industrialização chinesa voltada à exportação entrará em colapso, se não fracassar antes por conta do estouro de suas próprias bolhas financeiras internas. Isso seria ao mesmo tempo o segundo e definitivo crash dos tigres asiáticos. Já agora, no séquito da China, seu crescimento transcorre com um dinamismo bem menor do que outrora, quando se encontravam no séquito do Japão; uma boa parte dos danos da crise de 1997/98 ainda não foi reparada.

Conforto relativo

Mas, mesmo que a ofensiva chinesa nas exportações continue ainda por algum tempo, seu raio de ação é tão restrito que ela não pode provocar nenhum grande surto de desenvolvimento. Pelo contrário, a economia interior colossal ameaça cair numa crise de dimensão imprevisível justamente devido aos aparentes êxitos da economia externa. É verdade que o crescimento das exportações na China proporcionou um aumento do bem-estar a "dúzias de milhões de pessoas", como acentuam os otimistas. E talvez mais 150 milhões de chineses possam levar uma existência de pobreza, capaz de participar do mercado mundial com os produtos residuais desse novo bem-estar.

De novo isso parece impressionante apenas em números absolutos. Mas o que fazer com o restante, cerca de 1 bilhão de pessoas? Essa massa inimaginável ameaça se tornar "supérflua" e um ônus para a capacidade de participar do mercado mundial. Pois, com o ingresso na Organização Mundial do Comércio, a China precisa pagar sua industrialização voltada à exportação abrindo gradualmente os próprios mercados internos. Com isso a maior parte das indústrias estatais não-rentáveis e a agricultura, subprodutiva para os padrões globais, passam a ficar à disposição.

A existência da maioria da população chinesa está sendo "desvalorizada". Ao mesmo tempo se amplia o desnível entre as poucas regiões ascendentes da costa do Pacífico e o imenso interior que ficou para trás. Em nenhum país da periferia a sociedade é dilacerada tão brutalmente pela industrialização voltada à exportação do que na China. Na tentativa de montar o tigre capitalista, a burocracia partidária dominante se decompôs faz tempo em estruturas mafiosas ou de clã por detrás das fachadas rígidas do poder. Apesar da duríssima repressão, já ocorrem no interior do país milhares de tumultos locais e rebeliões abertas.

Enquanto a tempestade do colapso vai se formando, o capital monetário global, sob os anúncios do sucesso chinês, flui ainda em grande volume rumo às "bolsas-limiar", ignorando o desastre argentino. Mas a crise chinesa vindoura promete ser não só a mais dura de todas as crises asiáticas, mas também a pior de todas as crises dos "países-limiar" em geral. Depois do fiasco do otimismo com a China, poderá ser difícil à corporação dos áugures econômicos inventar mais uma nova alternativa para o "futuro do crescimento".

Robert Kurz

Tradução de Luiz Repa.

Folha de São Paulo, Janeiro 2003