ECONOMIA POLÍTICA DOS DIREITOS DO HOMEM

ECONOMIA POLÍTICA DOS DIREITOS DO HOMEM

Robert Kurz

Haverá ainda alguém que queira criticar os Direitos do Homem ? Estar contra os Direitos do Homem seria como as crianças estarem contra os bombons. E por isso, toda a gente está naturalmente a favor dos Direitos do Homem: George Bush e Saddam Hussein, Yasser Arafat e Ariel Sharon, Rudolf Scharping e a Amnistia Internacional. Em nome dos Direitos do Homem bombardeia-se por todo o mundo e ocasionalmente tortura-se um pouco; em nome dos Direitos do Homem, as vítimas são tratadas e consoladas. Tanto os porta-vozes como os opositores da guerra capitalista pela ordem mundial invocam os Direitos do Homem; no caso dos Verdes atestam-se reciprocamente integridade moral em nome da razão de partido e, por isso, do ponto de vista de qualquer moral, estão de ambos os lados.

Alguma coisa pode não estar bem com os Direitos do Homem. A esta conclusão chegou, há mais de 150 anos, um homem chamado Karl Marx. Ele constatou o que tem um lugar central nas Declarações de Direitos do Homem: liberdade dos sujeitos do mercado, garantia da propriedade privada, segurança policial das transacções. Por outras palavras: "Homem", neste sentido, não é mais do que o ser produtor de mercadorias e ganhador de dinheiro, os "direitos" elementares da sua existência, até a "integridade da sua vida e do seu corpo", só podem ser possuídos na medida em que ele tenha alguma coisa, ou, no mínimo, ele próprio (e no caso mais extremo os seus órgãos corporais) para vender, ou seja, tenha, por seu lado, capacidade de pagamento.

Um Homem só é titular de direitos, ou seja, titular de Direitos do Homem, se puder funcionar na legalidade capitalista, que foi declarada como lei natural da sociedade. O chamado "Esclarecimento" burguês apenas entendeu como "humana" a existência dos sujeitos do "trabalho" abstracto desenvolvido nos espaços funcionais da economia empresarial e do comércio de mercadorias nos mercados (em suma: a esfera de realização da valorização do capital). É subentendido, que o "Homem" já surge nesta forma social do útero materno, porque só se pode conceber, quer física quer espiritualmente, sob a forma de um tal ser "económico".

Não está previsto o caso de o Homem como Homem poder sair destas condições supostamente "naturais". Contudo, foi precisamente esse o caso periodicamente criado pelo capitalismo. No decurso da terceira revolução industrial isso tornou-se mesmo, irreversivelmente, um estado existencial duradouro para a maioria global. Só que esse estado não coincide com a definição iluminista de Homem. Os "supérfluos" do capitalismo, segundo essa definição, não são seres humanos, mas apenas objectos naturais, como um seixo, uma barata ou um escaravelho da batata (o marquês de Sade já tinha chegado a esta conclusão, com apurado cinismo, no século XVIII).

Daqui decorre que os modernos Direitos do Homem não são uma promessa, mas uma ameaça: se uma pessoa já não é economicamente utilizável e funcional também já não é, em princípio, sujeito de direito, e, se já não é sujeito de direito, não é já um Homem. A potencial desumanização dos "supérfluos" é mantida na concepção burguesa do Esclarecimento, na medida em que o coisificado Homem capitalista, na forma "anti-natural" de excluído, ainda é menos que uma coisa. Esta última consequência é o princípio secreto de toda a economia política e sobretudo da moderna política democrática. Ele é a essência daquele "realismo" embriagado que há muito inquinou a própria esquerda política. Toda a "Realpolitik" [política do realismo] traz consigo a "marca de Caim" desta implacável lógica.

As organizações civis dos Direitos do Homem, como a Amnistia Internacional e outras, não são instituições de "Realpolitik", pelo contrário, são muitas vezes um espinho cravado nesse tipo de política. Com a sua defesa directa das vítimas da guerra e da perseguição, com a sua inconcussão (ao contrário dos políticos tradicionais) e a sua muitas vezes demonstrada coragem contra os poderes dominantes, constituem uma importante instância da ajuda prática e, não em menor medida, de crítica e de denúncia. Mas também neste campo estão limitadas. Elas defendem as vítimas exclusivamente em nome do princípio que as tornou vítimas. Por isso não podem prosseguir a necessária crítica da sociedade; a sua actividade pode atacar tanto as causas sociais da violência e da perseguição como a Cruz Vermelha pôde evitar a Primeira Guerra Mundial. O título ideológico da sua ainda burguesa auto-compreensão torna extraordinariamente ambígua, não a sua actividade empírica em si mesma, mas a sua legitimação. E por isso correm o risco de precisamente a sua existência e os seus efeitos poderem ser instrumentalizados para a justificação do terror económico global.

O reconhecimento evidente do Homem, ou seja, de todos os Homens, na sua existência corporal, espiritual e social, só pode ocorrer para além da definição Iluminista-capitalista do ser humano. Nesta medida, a crítica emancipatória dos Direitos do Homem é a condição de toda a crítica no século XXI, como a crítica da religião foi a condição de toda a crítica no século XIX. É a crítica radical do "princípio de realidade" do capitalismo e da sua redução economicista do humano, e também, a partir daí, a crítica radical de toda a "Realpolitik". Nas condições da crise mundial do capitalismo, trata-se, não de uma ideia estranha ao mundo, mas, pelo contrário, de um "contra-realismo" do estado de emergência social, que a experiência prática da avassaladora repressão exercida pelo princípio autotélico económico irracional da "valorização do valor" não deixa manifestar. Tenhamos isto em conta: nem os princípios fundamentais mais belos da realidade dominante são os nossos princípios; nós temos é de nos ver livres desta realidade em lugar de nos tornarmos "realistas" do ponto de vista dos Direitos do Homem.

Original Alemão POLITISCHE ÖKONOMIE DER MENSCHENRECHTE publicado em Neues Deutschland, Outubro/2002.

Tradução de José Paulo Vaz, 08.11.2002