Paradoxos dos direitos humanos

Paradoxos dos direitos humanos

Enredadas na visão do mercado, que reconhece o ser humano apenas como uma abstração social, organizações de defesa e proteção às vítimas estão fadadas à impotência

Robert Kurz

Desde sempre houve ideais em cujo nome exércitos foram colocados em marcha, seres humanos mortos, países devastados e cidades destruídas. A última potência mundial e seus vassalos não constituem exceção alguma: junto com os porta-aviões, os tanques e os helicópteros de batalha do exército de invasão ao Iraque, a idéia de direitos humanos é novamente mobilizada para poder apresentar ao mundo um documento legitimador. Mas o notável é que os críticos desse processo apelam aos mesmos ideais. Os milhões que protestaram no mundo todo contra os planos de guerra não falam uma língua ideológica diferente daquela do governo norte-americano.
Quando se trata de princípios, [o linguista e intelectual de esquerda] Noam Chomsky diz o mesmo que George W. Bush. É em nome dos direitos humanos que cai a chuva de bombas; e é em nome dos direitos humanos que as vítimas são assistidas e consoladas.
Usualmente os críticos dizem que a realidade não concorda com os ideais. Se há um direito humano à vida e à integridade física, como se pode aceitar então, com anuência, que as intervenções militares ocidentais matem mais pessoas inocentes que as atrocidades dos ditadores e dos terroristas?

Os EUA, é o que se diz, utilizam os direitos humanos apenas como pretexto para os interesses totalmente profanos do poder e da economia; não lhes interessa a situação jurídica da população, mas apenas o petróleo. E por isso, assim prossegue o argumento, há dois pesos e duas medidas: em toda parte onde os detentores do poder se destacam pelo bom comportamento, deixando por exemplo que os bombardeiros norte-americanos estacionem em seus territórios (como na Turquia, provavelmente, ou na Arábia Saudita), a autonomeada polícia mundial ocidental não há de objetar nada contra a pilhagem, a perseguição e a chacina de grupos inteiros da população ou contra as condições ditatoriais. Todos esses argumentos não são de modo algum falsos, no que concerne aos fatos. O problema reside na interpretação desses fatos. Trata-se simplesmente de uma incoerência do poder imperial ocidental, que pisa em seus próprios princípios? Nesse caso se poderia de certo modo reclamar esses princípios, pelo menos segundo sua natureza, e o poder puro ficaria sem legitimação. Ou as coisas se passariam de maneira diversa, sendo que na realidade as intervenções em nada humanitárias correspondem inteiramente à lógica dos direitos humanos? Nesse caso o erro estaria ao lado dos críticos, que ignoram a essência desses princípios. À primeira vista, essa última idéia parece absurda. O conteúdo dos direitos humanos não consiste justamente no reconhecimento universal de todos os indivíduos de modo igual, sem nenhuma diferença? Como pode então ser compatível com os direitos humanos desrespeitar a vida de tantos indivíduos? Quem argumenta desse modo esquece que o procedimento totalmente normal e cotidiano da socialização global através dos mercados implica um não-reconhecimento permanente de inúmeras vidas humanas. Quando os bombardeiros "high-tech" dos EUA jogam sua carga fatal sobre justos e injustos, eles só executam ativa e violentamente a mesma lógica que se efetua, numa extensão muito maior, passiva e silenciosamente através do processo econômico. Ano após ano morrem milhões de pessoas (inclusive crianças) de fome e enfermidades pela simples razão de não serem solventes.

Um ser solvente
É verdade que o universalismo ocidental sugere o reconhecimento irrestrito de todos os indivíduos, em igual medida, como "seres humanos em geral", dotados dos célebres "direitos inalienáveis". Mas, ao mesmo tempo, é o mercado universal que forma o fundamento de todos os direitos, incluindo os direitos humanos elementares. A guerra pela ordem do mundo, que mata pessoas, é conduzida em prol da liberdade dos mercados, que igualmente mata pessoas e, com isso, também em prol dos direitos humanos, visto que estes não são imagináveis sem a forma do mercado. Temos de lidar com uma relação paradoxal: reconhecimento por meio do não-reconhecimento, ou, inversamente, não-reconhecimento justamente por meio do reconhecimento. A aparente contradição se dissolve se perguntamos pela definição de ser humano que subjaz a esse paradoxo. A primeira fórmula dessa definição reza: "O ser humano" é em princípio um ser solvente. O que naturalmente significa, por consequência, que um indivíduo inteiramente insolvente não pode ser em princípio um ser humano. Um ser é tanto mais semelhante ao homem quanto mais solvente ele é, e tanto mais inumano quanto menos preenche esse critério. Se em testamento um milionário excêntrico lega sua fortuna a seu cão, segundo essa lógica o animal assim enriquecido é um ser humano em grau mais elevado que uma criança da favela. Contudo a solvência constitui nesse exemplo apenas uma característica externa contingente. Mas, se entendermos a definição de ser humano como uma relação social, que naturalmente um cachorro não pode contrair, então a característica da solvência indica que se trata de um sujeito do sistema produtor de mercadorias. Somente um ser que ganha dinheiro pode ser um sujeito do direito. A capacidade de entrar numa relação jurídica está ligada, portanto, à capacidade de participar de alguma maneira no processo de valorização do capital.

Direito natural e social
Conforme essa definição, o ser humano tem de ser capaz de trabalhar, ele precisa vender a si mesmo ou alguma coisa (em caso de necessidade, os próprios órgãos do corpo), sua existência deve satisfazer o critério da rentabilidade. Esse é o pressuposto tácito do direito moderno em geral, ou seja, também dos direitos humanos. No início, esse direito foi designado "direito natural". Em particular os filósofos do Iluminismo ocidental viam os indivíduos como se tivessem saído do corpo materno diretamente para o mundo na forma "natural" de um sujeito de direito. Porém essa forma é puramente social, ela é tão pouco "natural" quanto um contrato de aluguel ou a cianotipia de um míssil intercontinental. Havia apenas uma razão ideológica para falar aqui de "natureza": as formas sociais do moderno sistema produtor de mercadorias, do "trabalho" abstrato, da racionalidade empresarial e do mercado total eram consideradas as formas "naturais" do convívio humano. O ser humano, assim se afirma até hoje, socializa-se através de mercadorias, dinheiro e mercado segundo "leis naturais", exatamente como o castor constrói diques e a abelha recolhe néctar para a colméia. E, visto que o mercado total pressupõe que os seres humanos fechem contratos jurídicos para todos seus processos vitais, a suposta naturalidade do capital e do mercado precisava incluir também uma suposta naturalidade do ser humano como sujeito de direito. Os direitos humanos deveriam ser apenas a garantia elementar dessa forma social: o reconhecimento universal do "homem" segundo essa definição somente. Porém, uma vez que o ser humano real, o indivíduo vivo, não nasce de modo algum conforme um automatismo biológico na qualidade de sujeito da valorização e do direito, abre-se uma lacuna sistemática entre a existência real dos indivíduos e essa forma social. De certo modo, essa lacuna não é apenas uma lacuna "ontogênica", atinente aos homens individuais, mas também "filogênica", ligada ao desenvolvimento histórico da sociedade. Pois a constituição do capitalismo e da forma jurídica universal correspondente foi tão pouco natural que somente na modernidade esse sistema surgiu e se impôs contra as vigorosas resistências do ser humano. Originariamente o "trabalho" abstrato não foi um "direito" pelo qual todos teriam ansiado, mas uma relação de coerção, imposta com violência de cima para baixo, a fim de transformar os seres humanos em "máquinas de fazer dinheiro". Pode-se observar aí um duplo entrelaçamento paradoxal de "reconhecimento" e "não-reconhecimento" na forma jurídica moderna. O direito implica, segundo sua essência, uma relação de inclusão e exclusão. Universal é somente a pretensão ao domínio absoluto dessa forma. Como já foi mostrado na característica externa da solvência, trata-se do domínio de uma abstração social, encarnada na forma do dinheiro e, por conseguinte, do direito. Mas essa forma abstrai justamente a existência física, as carências corporais, sociais e culturais do ser humano, reduzindo-o a um mero ser-aí, na qualidade de unidades do dispêndio de energia para o fim em si mesmo da valorização monetária. O "ser humano em geral" visado pelos direitos humanos é o ser humano meramente abstrato, isto é, o ser humano enquanto portador e ao mesmo tempo escravo da abstração social dominante. E somente como este ser humano abstrato ele é universalmente reconhecido. No entanto isso significa que esse reconhecimento inclui simultaneamente um não-reconhecimento: as carências materiais, sociais e culturais são excluídas justamente do reconhecimento fundamental. O homem dos direitos humanos é reconhecido apenas como um ser reduzido à abstração social; portanto ele é reduzido, como expressou recentemente o filósofo italiano do direito Giorgio Agamben, a uma "vida nua e crua", definida puramente por um fim exterior a ele.

Pretensão totalitária
O famoso "reconhecimento" é na realidade uma pretensão totalitária à vida dos indivíduos, que são forçados a sacrificar abertamente sua vida para o fim, tão banal quanto realmente metafísico, da valorização infinita do dinheiro através do "trabalho". Só secundariamente, para um resto de vista que serve na verdade apenas à regeneração em prol do fim totalitário, lhes é permitido qualificar sua própria vida real. A satisfação de suas necessidades é somente um produto residual daquele automovimento metafísico do dinheiro a que eles estão acorrentados justamente por meio de seu reconhecimento como sujeitos abstratos do direito.
Esse reconhecimento paradoxal (do ser humano abstrato) através do não-reconhecimento (do ser humano vivo e social) obtém sua notável força de convencimento pelo fato de que poderia vir a ser ainda pior. Pois o não-reconhecimento relativo contido nesse reconhecimento meramente abstrato pode tornar-se a qualquer hora um não-reconhecimento absoluto, a saber: quando os seres humanos se despregam do movimento totalitário do fim em si mesmo capitalista, isto é, quando não podem mais ser sujeitos nesse sentido. Nesse caso eles até mesmo perdem a "capacidade de ser reconhecidos" como seres humanos meramente abstratos, deixando de ser, conforme aquela definição, seres humanos em geral; nesse aspecto, eles valem "objetivamente" apenas como um fragmento de matéria, como meros objetos naturais, tal qual seixos, equissetos ou escaravelhos de batateira. O marquês de Sade foi o primeiro a anunciar, já no século 18, essa consequência, com toda a argúcia cínica. Sob uma tal ameaça, o azar de ser reconhecido meramente como ser humano abstrato, reduzido, transforma-se na sorte duvidosa de pelo menos possuir, nessa forma negativa e fantasmática, vigência social e uma certa semelhança com o homem. Embora o reconhecimento seja meramente negativo e pressuponha uma submissão, tampouco os "caídos" escapam à pretensão totalitária do sistema. A submissão dos homens à forma abstrata é enobrecida em "direito humano" porque essa submissão é considerada uma vantagem em relação àqueles que nem sequer são mais submetidos, mas sim inteiramente afastados do ser homem.

Promessa como ameaça
Uma vez que se abre aquela lacuna sistemática entre a pura existência dos seres humanos e o "direito de se submeter", os indivíduos não são por natureza "homens" nesse sentido, eles só podem se transformar em seres humanos assim definidos e em sujeitos de direito mediante um seletivo "procedimento de reconhecimento". O procedimento de seleção pode ser "objetivo" (segundo as leis da valorização e da situação do mercado) ou ser efetuado "subjetivamente" (segundo as definições ideológicas ou políticas de "amigo" e "inimigo").
De acordo com esse procedimento, a existência real dos indivíduos pode ser reprovada tanto quanto uma mercadoria não reconhecida pelo mercado, considerada "supérflua". E, caso necessário, os mísseis ou, como "ultima ratio", as bombas atômicas terminarão definitivamente o "procedimento de reconhecimento", a fim de levar os indivíduos não mais capazes de reconhecimento ao status de matéria física.
Por esse motivo, a promessa dos direitos humanos é desde sempre uma ameaça: se não podem ser preenchidas as condições tácitas que definem na modernidade "o ser humano", então deve faltar o reconhecimento. No entanto, para a maioria das pessoas, essas condições tácitas não são mais preenchíveis atualmente, mesmo que se esforcem até chegar à auto-renúncia, que consiste em acatar a submissão à forma abstrata do dinheiro e do direito. O término de sua existência, na qualidade de "danos colaterais" do mercado mundial ou das intervenções da polícia mundial, é previsível.
Essa constatação amarga não depõe contra os motivos de muitos indivíduos e organizações que defendem as vítimas em nome dos direitos humanos e muitas vezes demonstram coragem contra as forças dominantes. Mas esses esforços assemelham-se ao trabalho de Sísifo, se não se consegue superar a forma paradoxal e negativa da sociedade mundial, que possui poder de definição acerca de quem é de modo geral um "ser humano" e que, por conseguinte, define os direitos humanos.

Março de 2003

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor de "Os Últimos Combates" (ed. Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!