A propósito da guerra contra o Iraque
Breve comentário para rádios independentes
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Ernst Lohoff
Toda a gente o sabe: vem aí guerra. Não é que as populações da Europa e dos EUA estejam tomadas pelo frenesim da guerra; não é que a administração Bush tivesse convencido a ONU, e muito menos a opinião pública mundial, da necessidade premente de remover o regime de Saddam com recurso à violência; a guerra é inevitável porque o governo dos EUA declarou a sua inevitabilidade.
Não haja dúvidas: O aparelho militar da última superpotência, tornada autista pela perda de todos os adversários, tem capacidade para com as suas bombas arrasar o Iraque juntamente com a respectiva população. Em termos militares, o ditador de Bagdade nada tem a opor ao Pentágono. O que é menos evidente, porém, é o que Bush e Cia se propõem com esta campanha militar. E mais obscuro ainda é o que se vai seguir à saída de cena de Saddam Hussein imposta do exterior.
O movimento pela Paz nos EUA e na Europa julga saber de que se trata. Na sua opinião, a "luta contra o terror" não passa de um pretexto. Na realidade o objectivo seria o controlo das reservas estratégicas de petróleo na região do Golfo.
Uma coisa é certa: O regime de Saddam Hussein nunca teria sido escolhido pelos EUA como um alvo a abater se o Iraque estivesse situado em alguma região do globo livre de petróleo. O homem do petróleo do Texas não se esqueceu de quem com o seu dinheiro lhe abriu o caminho para a casa branca. Em caso de dúvida, o negócio do petróleo iraquiano é sempre um direito natural dos financiadores de Bush. No entanto engana-se quem quiser desmascarar a campanha do Iraque como parte integrante de uma bem reflectida concepção global de ocupação imperial de territórios. O cálculo de interesses do lobby do petróleo é apenas um fenómeno colateral, devendo o cerne do conflito ser procurado noutro lugar.
Está claro que a Al-Quaeda tem bases mais sólidas em Hamburgo do que em Bagdade; é evidente que o alegado conhecimento por parte dos serviços secretos americanos de ligações entra Bin Laden e Saddam Hussein não passa de pura propaganda. Mesmo assim, Bush e Powell não mentem ao declararem que a agressão ao Iraque constitui a resposta ao 11 de Setembro – desde que se traduza "resposta" por "resposta suplente".
O atentado ao World Trade Center abalou a auto-estima da superpotência restante até ao tutano. Perante esta profunda humilhação faz falta um sucesso militar que demonstre que os EUA são capazes de imporem o respeito à sua ordem em qualquer parte do mundo. Como o hipersofisticado aparelho de destruição militar dos EUA não está à altura de lidar com o verdadeiro desafio, que são as redes transnacionais do terror, teve de se arranjar um alvo que permitisse o uso bem sucedido das bombas guiadas por laser e dos mísseis de cruzeiro. O processo da globalização não só transformou radicalmente a economia mundial como também o mundo da guerra e da violência. Os conflitos armados do passado, e muito mais os do futuro, funcionam segundo uma lógica que difere da das velhas guerras entre estados. Com o artifício do estado vilão, a liderança dos EUA constrói uma alucinação de uma réplica dos cenários dos conflitos tradicionais em que, com o seu aparelho militar de alta tecnologia, ainda pode fazer um brilharete como a potência de todas as potências.
É verdade que não há motivo para derramar uma lágrima pelo regime de Saddam Hussein. No entanto a pandilha em cujas mãos deverá cair o Iraque conquistado faz com que a alegria teime em não se instalar. Até à data, o Iraque foi a presa de uma grande confraria de senhores da guerra e cleptocratas; se os EUA inculcarem ao país à bomba os valores ocidentais, ele ameaça por ser subdividido, à imagem do Afeganistão, nos talhões de empresários da guerra concorrentes e patrocinados pelos EUA.
As potências imperialistas sempre ocultaram realidades feias por detrás de palavras de ordem bonitas. Desta vez, porém, a discrepância tem origem em menor grau em um cálculo cínico. Antes ela reflecte o carácter profundamente irracional de todo o empreendimento contra o Iraque. A liderança dos EUA alardeia um reordenamento do Iraque sob o signo da economia de mercado e da democracia. Esta ideia é perfeitamente absurda. Tal como todo o terceiro mundo, o Iraque já deixou atrás de si a sua fase de modernização e ocidentalização, e o nome de Saddam Hussein é precisamente o sinónimo desse processo fracassado. A cruzada democrática vai acabar por brindar a comunidade internacional apenas com mais um dispendioso protectorado da ONU.
O inimigo principal encontra-se em todo o caso no próprio país, assim o quer uma antiga máxima anti-imperialista. Na era da globalização, esta sentença já não se aplica de forma incondicional. O imperialismo há muito que se transformou em um imperialismo global com funções repartidas, e é precisamente o seu esmagador poderio militar que predestina os EUA para desempenharem um papel especialmente funesto. À chamada velha Europa realmente não pode ser imputada qualquer motivação nobre; Schröder não é Madre Teresa de Calcutá nem Mahatma Gandhi; mesmo assim, ele e Chirac representam, face à estranha necessidade da administração Bush de, por motivos de segurança, pegar fogo a todas as mechas disponíveis, a racionalidade restante do imperialismo.
E há mais uma ideia ultrapassada de que os anti-imperialistas têm de se despedir face ao conflito iraquiano: Nem tudo o que prejudica o imperialismo é também útil à emancipação. Há uns bons cinquenta anos, Ernesto Che Guevara postulava "dois, três, muitos Vietnames". Com os seus "repetidos golpes, esses Vietnames deviam forçar o imperialismo a "fragmentar as suas forças", preparando assim a sua derrota definitiva. Bush Júnior está prestes de pôr em prática o programa de Che à sua particular maneira. Todos os anos cria um novo Afeganistão, um novo protectorado, que prende tropas internacionais por décadas. Com cada campanha contra o desafio islamista assegura novos adeptos ao seu adversário e arruina mais as finanças públicas dos EUA. Acontece que isso abre tudo menos as brilhantes perspectivas de futuro que Che esperava.
(Março de 2003)
Tradução de Lumir Nahodil