Norbert Trenkle - GLOBALlZAÇÃO E MIGRAÇÃO*

GLOBALlZAÇÃO E MIGRAÇÃO*

Norbert Trenkle**

"A tendência à criação do mercado mundial já é parte inerente do próprio conceito de capital".

Karl Marx

Passados cerca de 150 anos desta declaração, teria o capital alcançado a realização dos seus sonhos? Teria ele se tornado no final do século XX um capital realmente "global"? Ou a tão citada "globalização" não passa de uma nova palavra da moda para denominar o velho domínio do capital no mundo?

O que significa "globalização"

Devemos fazer distinção entre o conteúdo deste conceito de sua conotação ideológica e de seu uso. Num primeiro instante, a globalização chega a parecer algo atraente, algo como uma reconciliação, abrangendo todo o mundo sob o teto comum do mercado, parecendo proporcionar relações de vida igualitárias e melhores no mundo inteiro. Utilizado neste sentido no discurso neoliberal, o conceito encontra repercussão nas teorias de comunicação ingenuamente afirmativas. As teorias de comunicação celebram euforicamente a rede eletrônica mundial como a realização definitiva da visão democrática de igualdade, num patamar superior ao dos limites dos Estados Nacionais. Isto vai entrar em choque com o potencial simultâneo e ameaçador do conceito de globalização que tem servido no mundo inteiro para justificar a redução brutal dos níveis salariais, sociais e ambientais. Hoje em dia qualquer um (sindicatos, governos municipais ou federais) pode ser pressionado mediante o argumento de que é possível encontrar em alguma parte do mundo locais mais vantajosos para se produzir a custos mais baixos.

Um poder de tal envergadura material não pode provir exclusivamente de um mero constructo ideológico. A globalização não é apenas uma invenção do neoliberalismo. Ao contrário, este conceito alude a uma dura realidade econômica, e esta nada tem a ver com as promessas dos fundamentalistas do mercado. Globalização, do ponto de vista econômico, é a generalização da valorização do capital, ou seja, é a produção de um mercado mundial enquanto referencial da concorrência. Embora o "mercado mundial" em si não seja nada de novo, ele ganhou novo impulso com o desenvolvimento das forças produtivas nas últimas duas décadas, possibilitando às empresas, de forma inédita, livrar-se dos laços com determinados Estados Nacionais e organizar-se de forma a ultrapassar as fronteiras dos países.

Após a Segunda Guerra Mundial, ainda durante o grande boom fordista, apoiado no duplo fundamento da produção em massa e do consumo em massa e em conseqüência da rígida organização do trabalho ( o padrão tecnológico era a linha de montagem), a produção era praticamente imóvel espacialmente e, por isso, dependente de determinados espaços locais. Nos anos 70, isso mudou com grande velocidade. Com o surgimento de novos meios de transporte e de comunicações mais rápidos e mais baratos, e com a simultânea revolução da produção, do planejamento da produção e da logística pela microeletrônica, tornou-se inicialmente mais rentável a transferência do local de determinadas etapas e segmentos de produção mais intensivos de trabalho para regiões de níveis salariais mais baixos. Esta "nova divisão internacional do trabalho" transformou-se, então, pouco a pouco, numa organização de valorização do capital, orientada diretamente pelo mercado mundial enquanto referencial. Passava-se a dividir unidades empresariais inteiras em segmentos que eram transferidos para diversos locais, sob critérios baseados nos custos. Mesmo áreas funcionais até então localizadas nas centrais das empresas, como por exemplo partes da pesquisa e do desenvolvimento, da administração ou da programação de softwares, podiam ser transferidas para outros locais. Paralelamente, a internacionalização dos mercados financeiros possibilitou, de maneira quase que ilimitada, a transferência de lucros e a utilização impiedosa de quaisquer vantagens fiscais.

A princípio, todos os Estados neste processo tornaram-se joguetes nas mãos do mercado mundial, relegando a segundo plano todas as suas atividades político-econômicas. Enquanto "locais", concorrem entre si pela acomodação dos setores de produção e da administração; os setores financeiros das empresas agem de forma transnacional. Os Estados são assim obrigados a fazer concessões cada vez maiores a essas empresas. Este processo encontra-se apenas em estágio inicial. Só agora é possível perceber que a Europa, que até então vinha externando abertamente ao "Terceiro Mundo" os custos do seu sucesso no mercado mundial, sofria a pressão que tinha sido exercida pela concorrência, obrigando-a a cortes sensíveis no sistema social.

Contudo, o fato de que os Estados ocidentais estejam sendo atropelados atualmente por uma dinâmica de desenvolvimento que eles próprios desencadearam não significa absolutamente que a globalização leve a um ajuste das relações de vida no mundo todo, ou, por assim dizer, a um padrão médio do "bem-estar" capitalista, pois o rebaixamento do padrão social e ecológico nas metrópoles do mercado mundial não vem sendo acompanhado de maneira alguma por uma elevação geral do padrão de vida nas outras regiões concorrentes. Ao contrário, mantém-se a tendência da polarização regional, econômica e social na forma de uma espiral decrescente, inerente ao capitalismo. Isto acontece de duas maneiras: em primeiro lugar, aumentam as discrepâncias entre as regiões perdedoras e ganhadoras do mercado mundial. Em segundo lugar, após uma longa fase em que o problema parecia ter sido "solucionado", agrava-se internamente a polarização regional e social nas nações ocidentais industrializadas.

A respeito do primeiro ponto

Somente alguns poucos países do Terceiro Mundo e parte do antigo Bloco Oriental obtiveram ganho relativo com o deslocamento dos processos de produção e das funções das empresas. E tudo isso somente às custas de uma dependência quase que total das exportações para os países ocidentais. Isso diz respeito, principalmente, à relação entre os países do Sudeste Asiático e os EUA. Entretanto, nem mesmo esses países conseguiram realizar uma modernização à maneira dos países ocidentais na totalidade de seus territórios. A industrialização concentrava-se (provavelmente excetuados os países denominados de "Pequenos Tigres") e continuaria a concentrar-se em poucas áreas, com enclaves, enquanto a grande parte restante do país ia empobrecendo e grande maioria da população experimentava as conseqüências negativas da destruição de seus modos de vida.

Dessa feita, sob a égide do capital agora globalizado, vai agravando-se cada vez mais aquele processo que já foi analisado pelos anos 60 e 70, segundo a teoria da dependência, sob a denominação de marginalização. Este processo tendeu a agravar-se mais ainda porque foram derrubados quase que integralmente, em conseqüência da crise, das dívidas e da queda do assim chamado "socialismo real", os muros da política econômica e comercial dos Estados Nacionais. Empresas orientadas para a satisfação da demanda de consumo do mercado interno foram atingidas pelos ventos cortantes do mercado mundial. As tentativas iniciais de estruturas coerentes de economias nacionais foram praticamente destruídas. Como única proteção mencionável frente à pressão da concorrência global restou o instrumento da taxa cambial. Este instrumento foi largamente utilizado por vários países da Ásia e da Europa Oriental que mantinham uma certa capacidade de concorrência no mercado mundial através da permanente subvalorização de suas moedas. Porém, este dumping da taxa cambial exigiu um alto preço. Baixava o padrão de vida da população ainda mais (importações de mercadorias necessárias ao consumo encarecem em demasia) e levava ao mesmo tempo à liquidação da substância industrial e infra-estrutural e à extinção dos recursos naturais daqueles países. A estratégia oposta, adotada por vários países latino-americanos, entre eles a Argentina, o México e desde o Plano Real também o Brasil, não era menos catastrófica. Através da supervalorização artificial da moeda seria possível atrair o capital especulativo para o país, maquiar passageiramente os balanços monetários e reciclar as dívidas externas. Mas essa cosmética estatística eleva o custo de vida a índices assustadores, e, em função dos altos juros e das importações barateadas, arrasta a economia à bancarrota. Além disso, paira permanentemente o perigo de um crash nas bolsas de valores e nas finanças, com conseqüências catastróficas (como por exemplo o México nos fins de 1984), como se tivesse a espada de Dâmocles sobre esses países.

Isso significa que não é possível detectar muito a respeito de uma possível felicidade humana mundial por causa das bênçãos da economia mundial globalizada. Muito pelo contrário. Cada vez mais regiões estão sendo quase que completamente excluídas do ciclo capitalista de valorização e são relegadas a um estado agonizante e miserável sem precedentes. Esse é o caso da África, do sul do Saara, mas serve também para grandes partes da Ásia, da América Latina e para o antigo Bloco Oriental (especialmente para a antiga URSS) .As calamidades famélicas e os processos bélicos de autodestruição nem merecem ocupar um pequeno espaço no noticiário televisivo noturno. Somente exclusões extremamente graves, como o caso da África Central, é que podem chamar a atenção dos meios de comunicação, ainda assim por poucos dias, porque a "notícia" perde rapidamente o seu caráter exótico e aterrorizante, e o público gosta de ser "entretido" de uma outra maneira.

A respeito do segundo ponto

A globalização, portanto, vem sendo acompanhada por uma crescente concentração da valorização do capital na assim chamada tríade (Estados Unidos, Europa e Sudeste Asiático) e alguns pontos de apoio ligados ao oceano da miséria mundial. Mas a pauperização absoluta se dá também nas próprias metrópoles, enfraquecendo a sua estabilidade territorial e social interna. A força propulsora disso, como já foi mencionado, é a liquidação do referencial das economias nacionais da valorização do capital. Quanto mais organizados ficam os capitais, superando as fronteiras mais débeis, transformam-se em potencialidades de controle e de regulamentação dos governos nacionais. Se antigamente estes governos podiam estabelecer as condições gerais da produção de mercado em seus mercados internos, isso se dá hoje de forma diferente, fazendo com que os Estados e regiões ocidentais tornem-se cada vez mais variáveis e dependentes do jogo brutal da concorrência transnacional. Caso eles rejeitem a aceitar essas regras e não reduzam os impostos, gastos sociais e custos com restrições ambientais, são atingidos imediatamente pela penalidade de retirada do capital. Obviamente, as empresas se aproveitam dessa constelação de uma forma vergonhosa e pressionam para obter a redução de exigências, mesmo onde não esteja planejada nenhuma transferência de áreas de produção ou onde a transferência dificilmente acontecerá. Mas, quanto a isso, os Estados e as regiões em geral nunca podem avaliar muito bem, por isso a ampliação estrutural dos raios de atração dos capitais aumentou consideravelmente o seu poder de negociação.

É claro que nessa jogada apenas poucos locais podem sair vitoriosos. Em geral trata-se de uma corrida de perdedores que mal continuam, porque sempre haverá aqueles que perdem relativamente menos. Essa espiral para baixo só poderia ser interrompida através de uma nova fase de acumulação capitalista integrando, em massa, a força de trabalho nas áreas centrais altamente produtivas das empresas no mercado mundial. Dessa maneira, a pressão sobre os sistemas sociais e os assalariados e as extorsões das empresas poderiam ser reduzidas, e não teriam tanto sucesso, isso sem levar em consideração que um crescimento mais acelerado seria um suicídio ecológico. Analisando do ponto de vista econômico, não se pode esperar isso. Sob as condições de alta tecnologia microeletrônica, nem mesmo uma enorme aceleração econômica criaria mais empregos para assalariados, pois um único emprego nos setores do mercado mundial necessita hoje investimentos entre trezentos mil e um milhão de dólares, e a produtividade continua a crescer1. A produção intensiva de trabalho precisa relacionar-se com o nível geral de produtividade, e por isso os salários vêm sendo nesta área paulatinamente reduzidos. Isso faz com que se acentue a miséria em massa em nível mundial, e não resolve as contradições econômicas do capitalismo. A mera redução dos salários em áreas subprodutivas não cria valor complementar, e é isso que o capitalismo necessita estruturalmente, o crescimento permanente da massa de valor. Além do mais, a racionalização por um lado e a redução dos salários e benefícios sociais por outro reduzem sistematicamente o poder de compra necessário para o consumo de uma crescente produção. Sendo assim, o neoliberalismo e a globalização, diversamente de todas as belas promessas dos ideólogos da economia de mercado, não oferecem nenhuma saída para a crise fundamental do sistema capitalista mundial, do qual somos todos reféns. Muito pelo contrário, somos os próprios elementos da movimentação dessa crise.

Característico para essa crise socioeconômica nas metrópoles é que, também aí, nesses últimos dez a quinze anos, expandiram-se os setores terceirizados, desregulamentados e informatizados. Nesse palco entram em cena fenômenos como a marginalização e a pauperização absoluta que, por muito tempo, foram sintomas característicos do "subdesenvolvimento". Como se sabe, esse processo se deu com mais intensidade nos Estados Unidos. Los Angeles pode ser considerada hoje praticamente uma metrópole do "Terceiro Mundo". A Europa encontra-se ainda numa fase inicial desse processo que, ao que tudo indica, tende a acelerar-se bastante nos próximos anos. Aí também, os mais privilegiados se sentem obrigados a retirar-se para bairros protegidos por vigilâncias e são construídos cada vez mais Shoppings Centers, onde o acesso aos pobres é interditado, crescendo mais e mais o número de dependentes de drogas e mendigos entre os que são expulsos dos centros urbanos para a periferia.Em Hamburgo um político liberal até propôs, com esse intuito, que se criasse um "imposto para mendigos". Concomitantemente, cresce na Europa o número de empregados ilegais em um segundo "mercado de trabalho". Assim, podemos realmente dizer que as condições de vida se igualam em todo o mundo em conseqüência da globalização: o "Terceiro Mundo" entra estruturalmente nas metrópoles. Certamente não podemos esquecer que não há uma eliminação das diferenças de relações de vida e renda. Não acontece uma homogeneização regular "para baixo", porque nas metrópoles do mercado mundial ainda existe um componente econômico-social importante que pode ser aproveitado, ou seja, no processo da autodestruição capitalista global as velhas desigualdades se desdobram, apesar do aumento do número de regiões e de grupos populacionais que podem ser considerados perdedores absolutos no mundo inteiro.

Migração no mundo globalizado

Quais são as consequências destes processos para o fenômeno das migrações? Primeiramente, podemos constatar que a polarização regional e social crescente continua a criar grandes potenciais de migração. Como sempre, pobreza, miséria social e opressão fazem com que as pessoas procurem regiões e cidades nas quais a situação econômica prometa ao menos certas chances para uma vida melhor, mas essas chances são cada vez menores. Sob o regime de globalização e do neoliberalismo, menores contingentes de migrantes internos nos países do Terceiro Mundo conseguem conquistar, através do trabalho árduo, um mínimo e modesto bem-estar: uma casinha, uma geladeira e talvez uma lavadoura de roupas. Muitas vezes a renda mal garante a sobrevivência, e em muitos casos nem isso. Mesmo assim, a migração para as cidades, apesar de não ter o mesmo ritmo de dez ou quinze anos atrás, continua a acontecer porque as condições de vida no campo pioram cada vez mais. Desta feita, a miséria concentra-se nos centros metropolitanos cuja infraestrutura não pode mais suportar.

Ao mesmo tempo, a migração internacional cresceu fortemente, refletindo claramente as desigualdades socioeconômicas existentes. Países do Terceiro Mundo e do antigo Bloco Oriental menos atingidos pela crise mantêm-se ainda como destinos relativamente atraentes para pessoas dos países vizinhos empobrecidos: bangladeshis migram para a Índia, bolivianos para o Brasil, russos para a Polônia, etc. Sem dúvida, eles enfrentam uma exploração brutal e extrema, pois são, em geral, migrantes ilegais e, portanto, sem direitos a exigir. Nos países de imigração eles são os grupos de nível mais baixo do mercado de trabalho desregulamentado, e, vivendo na ilegalidade, são utilizados com o propósito de reduzir ainda mais os salários dos "nativos". A mesma coisa acontece com aqueles que, em número cada vez maior, migram para os centros ocidentais do mercado mundial em busca de emprego. Se há quinze ou vinte anos ainda tinham pelo menos alguma chance de se integrar no mercado formal e de "subir" na escala social, hoje não lhes resta outra coisa que integrar-se ao "setor informal" e submeter-se a trabalhar por baixíssimos salários, em condições empregatícias totalmente inseguras.

A difícil e frequentemente insuportável situação socioeconômica dos migrantes internacionais está sendo reiterada por uma difícil situação política e ideológica nos países industriais e ocidentais. Infelizmente, sob a pressão da concorrência do mercado mundial, não se desenvolve nesses países, assim como em todo o mundo, nenhum movimento adverso à socialização capitalista e suas impertinências. Ao contrário, está sendo creditada aos estrangeiros a culpa dessa situação. Em nível estatal, o cotidiano e violento racismo reflete-se nas crescentes tendências ao fechamento de fronteiras. Neoliberalismo interno, e perante os países do 1erceiro Mundo pode existir, paralelamente à formação de blocos comerciais, a rejeição de imigrantes. Não é por nenhuma casualidade que o Acordo de "Schengen", que regula a introdução da unidade monetária européia, dita a rejeição completa de refugiados. A retirada das fronteiras internas no mercado europeu vem sendo acompanhada por um fechamento das mesmas para o exterior. Tudo isso não pode dar a impressão de que não exista algo como neoliberalismo e globalização só porque alguns defensores dessas tendências não obedecem à "doutrina pura". Isso expressa apenas desigualdades de poder, que permitem aos países ocidentais, num mesmo movimento geral "para baixo", descarregar a maior parte de suas cargas no hemisfério sul. Além do mais, não está obtendo sucesso a tentativa de frear realmente as migrações. A ilegalidade contribui apenas para piorar a situação dos migrantes, pois eles são banidos do uso da lei, sem que possam defender-se da exploração extremada. Os neoliberais se comprazem com isso. Os imigrantes contribuem para aumentar a desregulamentação e o exercício de pressão sobre os beneficios sociais e os salários. Se fossem integrados legalmente, ser-lhe-iam garantidas condições mínimas de nível de vida, o que, por certo, não seria de bom grado aos adoradores do mercado.

Ao falarmos de globalização e migração, não podemos limitar o nosso olhar à migração clássica do trabalho. A generalização do mercado mundial produz ou acentua ainda outras causas da migração que eu gostaria de citar rapidamente. Por um lado constatamos a destruição crescente das condições naturais de vida, obrigando que mais pessoas sejam expulsas de suas terras. O Banco Mundial fala de 100 milhões de pessoas; a Cruz Vermelha Internacional fala de 500 milhões de refugiados ambientais que precisam abandonar as suas terras por causa da erosão dos solos, da desertificação, da falta de água e outras "catástrofes naturais" (em geral provocadas socialmente ). ( cf Asit Datta: Causas de fuga no mundo. In: Blätter des iz3w, 203, Friburgo, 1995). Os dados estatísticos se chocam ao tentar distinguir as outras causas de migração, tais como a pobreza, a guerra e a opressão. Mas, mesmo sem uma certeza dos índices, fica muito clara a dimensão do problema que no futuro, por certo, terá maior importância.

Outro complexo de causas migratórias é o crescente número de guerras e guerras civis, muitas vezes acompanhadas pela decadência dos Estados Nacionais existentes (em 1993 foram registradas no mundo 53 guerras e guerras civis, em 1975 "apenas" 21 (v Datta, ibid. ) .Também isso deve ser visto em estreita relação com a globalização. Com a perda dos fundamentos econômicos nacionais e com a crescente polarização regional, no mundo todo a coesão estatal se tornou frágil porque os governos não estão mais sendo capazes de criar a coerência necessária para intervir regulativamente nos processos econômicos e sociais. É óbvio que isto assume as formas mais extremas onde a integração estatal-nacional sempre foi precária, em especial na África. Mas também o desmoronamento da Iugoslávia e os conflitos na antiga União Soviética devem ser entendidos frente a este pano de fundo, apesar de se tratar de uma história específica da "modernização tardia e recuperadora" na forma do "socialismo realmente existente" ( cf Ernst Lohoff: "Der dritte Weg in den Bürgerkrieg" / "A terceira via à guerra civil", Bad Honnef; 1996). Tendências e movimentos separatistas e regionalistas existem em quase todo o mundo e continuam a ganhar força na medida em que progride o despenhamento socioeconômico. Indicador forte é o fato de que em muitos países de grande extensão territorial algumas regiões e cidades mais ricas estão começando a impedir a entrada de migrantes internos, e que algumas delas rejeitam o pagamento de impostos aos governos centrais (um exemplo são as zonas de booms econômicos na China Meridional).

A globalização é, portanto, mais do que a continuação da separação econômica e política do mundo em "primeiro" e "segundo mundo" e uma volta à miséria absoluta nos países centrais. Na verdade, ela põe em questão a própria existência dos Estados Nacionais. Não se trata, porém, da "superação e supressão do Estado" no sentido marxiano, mas da desagregação bárbara em forma de guerras civis, de criminalidade cotidiana e poder mafioso. O Ocidente ainda fecha os seus olhos perante este processo secular, e explica de maneira racista-culturalista as guerras na África como expressão de "imaturidade" deste continente, excluindo os refugiados. Estes, por sua vez, procuram se refugiar, em sua grande maioria, nos países vizinhos ou em regiões mais pacíficas dos seus países. Contribuem, assim, sem querer, para a ampliação dos conflitos, como bem demonstrou o caso Ruanda/Burundi/Zaire. Frente a estes fatos, a grande lamentação dos Estados ocidentais sobre a enorme imigração é uma grande mentira. É verdade que as causas das fugas e das migrações forçadas não podem ser eliminadas pela abertura das fronteiras dos centros do mercado mundial. Mas, para combater estas causas, são os Estados ocidentais que menos contribuem. Eles agem segundo o velho lema cínico: combater os pobres e não combater a pobreza.

O "grito dos excluídos" 2

Finalmente eu gostaria de questionar se a marginalização e a pauperização, que formam o pano de fundo dos movimentos migratórios contemporâneos, podem ser analisadas de forma correta a partir do conceito de exclusão. José de Souza Martins pôs em questão no simpósio este conceito, que é fortemente usado pelas pastorais sociais da Igreja do Brasil, inclusive a Pastoral dos Migrantes e outras organizações sociais, e lançou a oportunidade para uma viva discussão. Sua tese central é que não existem excluídos "porque desde já todos os homens são parte do sistema capitalista". Segundo Martins, o capitalismo tem uma capacidade extraordinária para submeter as diversas formas de produção e reprodução não diretamente capitalistas e integrá-las ao seu circuito de valorização, à medida que transforma os bens produzidos e o trabalho gasto em mercadoria e dinheiro. Também formas de trabalho aparentemente não capitalistas, como o trabalho escravo, deveriam ser analisadas como parte do sistema, e no fundo não passariam de outra coisa do que formas de uma exploração extremamente acentuada (portanto, não poderiam ser consideradas como trabalho escravo no sentido mais fiel ao conceito). Desta forma, existiriam apenas graus diferenciados de "inclusão". De um lado haveria a plena participação na riqueza capitalista e nos direitos da cidadania, e, de outro, a simples e precária inclusão, abaixo do nível de pobreza.

Acredito que não se trata apenas de um mero jogo de palavras, mas de esclarecer duas questões fundamentais: a primeira questão é em função do poder do sistema capitalista, questionando se este poder realmente é tão poderoso e tão estável como aparece na era da globalização e do neoliberalismo. Segundo, como conseqüência disso, indagar sobre a questão da saída do fascínio desse poder, melhor dizendo, cogitar sobre a potencialidade das perspectivas de emancipação da coerção destrutiva do mercado e da forma mercadoria. Precisamos ir um pouco mais longe para poder responder a estas questões.

Concordo com a perspectiva de Martins no sentido de que hoje não existe mais nenhum modo de vida autônomo isolado do sistema mundial capitalista. Neste sentido, não há realmente exclusão e nenhum excluído. No decorrer de sua expansão histórica, o capitalismo subjugou o mundo inteiro e está presente até mesmo nas regiões onde a miséria é gritante e não contribui em nada com a valorização do capital. Refugiados de Ruanda - que não salvaram nada além da vida e que foram destituídos do básico para sua reprodução - não se encontram fora do sistema se livrando da morte por falta de alimentos enquanto a ONU envia-lhes esses meios de subsistência.

Tudo isso é totalmente correto, mas não diz nada sobre os mecanismos internos da exclusão e da socialização capitalista. De dentro do mundo total do mercado podemos falar que um número crescente de pessoas estão excluídas, ou seja, alijadas do status completo como proprietário de mercadorias, como seres livres e igualitários que se movimentam, em princípio, de uma maneira soberana na esfera do mercado, sendo protegidos por uma base de direitos de cidadania. O que significa isso? Eu gostaria de tomar como exemplo o trabalhador especializado da Europa Central, um alemão ou um francês, e compará-lo. a um carvoeiro brasileiro, extremamente explorado. Ambos vivem aparentemente em dois mundos sociais separados por uma muralha intransponível. O que ela significa? Do ponto de vista abstrato da valorização do capital, ambos são iguais. Ambos (mesmo que de modos diferentes) contribuem para a acumulação do capital e do lucro. Ao tratar, porém, de dois tipos de vendedores de mercadoria, a força de trabalho é fundamentalmente diferente. A primeira diferença está no fato de que o carvoeiro é obrigado estrutural e permanentemente a vender a sua força de trabalho por um preço muito abaixo do seu valor, o que tem sua expressão no fato de ele não poder reproduzir-se fisicamente e psiquicamente de uma maneira adequada. Disso resulta que ele não pode movimentar-se livremente no mundo total das mercadorias e do mercado, pois para isso precisaria, como condição mínima, de uma determinada quantidade de dinheiro. Quem, com seu salário, pode apenas comprar os alimentos básicos para si e sua família ( ou que os recebe em espécie) está excluído dessa liberdade de escolha. Ele é, portanto, um sujeito mutilado no mundo da mercadoria, que não participa das possibilidades de uma emancipação individual que esse status e essa forma de existência têm como princípio. No caso do trabalho escravo, integrado capitalisticamente, chega a ser ainda mais grave. Os homens escravizados são sujeitos no mundo da mercadoria apenas porque, diversamente dos escravos clássicos, podem ser "liberados" a qualquer hora, o que significa que "o patrão" não tem com eles nenhuma responsabilidade pessoal. Isso se mostra de maneira mais brutal quando esses escravos são "despedidos" e não dispõem sequer de um punhado de arroz ou feijão. A sua morte famélica tem o mesmo significado que a exclusão absoluta do sistema capitalista.

Analisando o outro ponto, o de um trabalhador especializado europeu ou em geral um assalariado das "metrópoles" ocidentais do mercado mundial, seu status social mais elevado não se reduz ao fato de ele receber um salário mais elevado do que o carvoeiro brasileiro, mas de existir uma diferença qualitativa. Ele é reconhecido socialmente enquanto proprietário, é possuidor dos mesmos direitos que os outros. Tem a dupla função de vendedor (da mercadoria força de trabalho) e comprador ( dos bens de consumo). Isto se expressa de várias formas. Primeiro: as condições de venda da mercadoria força de trabalho, pelo menos até hoje em dia, são formalmente regulamentadas e asseguradas por uma rede de normas jurídicas e acordos tarifários. Isto protege os assalariados de dependências pessoais e garante a sua soberania e a sua liberdade de decisão enquanto proprietários de mercadoria. Em segundo lugar, este status, como sujeito soberano no mundo das mercadorias, tem o seu apoio institucional através de um sistema social e de saúde que funcione, mesmo precariamente. Esse sistema oferece uma segurança básica em relação às oscilações e crises do mercado. Garante que uma pessoa não seja excluída da participação política, econômica e social e possa movimentar-se como sujeito consumidor e livre, mesmo que por um determinado tempo ou, permanentemente, não possa vender a sua força de trabalho. Em terceiro lugar, é criada a condição através de instituições de educação, financiadas por dinheiro público, para que os homens possam adequar a sua mercadoria, a força de trabalho, sempre ao último nível das exigências da produtividade, adaptando-se às condições de concorrência do mercado. Em quarto lugar, os assalariados estão equipados com um grande número de direitos políticos e civis garantidos por um sistema jurídico em bom funcionamento. Em quinto lugar, tudo isto está acompanhado pela constituição de uma consciência correspondente. As pessoas se definem positivamente na sua dupla função de compradores e vendedores de mercadorias. Definem-se como sujeitos soberanos no mundo do mercado e participam ainda, enquanto tais, das representações sociais e de direitos políticos. Eles são o que, em síntese, pode ser denominado como sujeitos livres e igualitários no mundo da mercadoria.

Eu tomei como exemplo o carvoeiro brasileiro, como caso extremo, contrapondo-o ao vendedor ocidental da mercadoria força de trabalho, descrito de uma forma típica e ideal. Este carvoeiro poderia ser chamado de sujeito paradoxal e monetarizado sem direito e sem dinheiro. Ou em outras palavras: apesar de ele se encontrar na forma de sujeito no mundo da mercadoria, não tem como aparecer nem enquanto vendedor soberano nem como comprador no mercado de trabalho e de bens de consumo, e nem pode participar dos direitos mais elementares de cidadania. Obviamente, existem as formas mais variadas e intermediárias de transição entre os dois pólos extremos. Mesmo assim, não há como negar que a maioria das pessoas do Terceiro Mundo não possui o status de sujeitos livres e iguais no mundo da mercadoria. Neste sentido eles são realmente excluídos. Isto é, no sentido de um mecanismo estrutural de exclusão interna no sistema mundial de mercadorias.

Parece óbvio lutar pela inclusão dos "excluídos", isto é, lutar para que eles sejam sujeitos plenamente reconhecidos no mundo da mercadoria. O "grito dos excluídos" me parece transferir essa mensagem pelo menos de maneira implícita. Queria alertar para que as pessoas não se percam em ilusões, pois uma tal luta só obterá êxito em momentos de prosperidade econômica do mercado. Também na Europa, a valorização dos grupos sociais operários inferiores foi conquistada com o intuito de virem a se tornar vendedores igualitários de força de trabalho, não de uma forma automática, mas como resultado de longas lutas sociais. Porém, essas lutas obtiveram êxito somente no sentido de seguir as forças da dinâmica interna do sistema porque a emancipação dos trabalhadores como mônades monetarizados modernos e individualizados era condição estrutural para o desenvolvimento do capitalismo. O permanentemente crescente nível de força produtiva exigiu e exige dos indivíduos uma crescente flexibilidade, mobilidade, iniciativa própria e automotivação no sentido da lógica da valorização. Estas características não podem ser esperadas de pessoas mantidas em dependência pessoal, sem formação, pauperizadas e sem direitos.

Mas no nível contemporâneo permanentemente crescente do desenvolvimento das forças produtivas precisa-se, conforme esboçado acima, de um número cada vez menor de pessoas para manter a maquinaria de valorização capitalista em funcionamento. O processo de expansão e de integração de forças de trabalho qualificadas não foi apenas freado, mas invertido. O sistema expulsa cada vez mais pessoas das suas áreas centrais, impedindo-as assim de manter o status como proprietários livres e iguais de mercadorias, à medida que também nas metrópoles capitalistas essas pessoas estão cada vez mais entregues sem proteção à concorrência do mercado sob a pressão da crise. Cada vez mais as pessoas estão sendo excluídas do sistema no sentido absoluto, porque elas não estão sendo utilizadas sequer como força de trabalho extremamente explorada, isto é, têm que morrer de fome.

Frente a esse panorama, a reivindicação de uma reinclusão dos excluídos parece cair no vazio. É necessário realizar uma mudança de perspectiva que leve a sério a possibilidade de uma auto-exclusão emancipatória. Nesse sentido, o conceito de exclusão ganharia um novo conteúdo. Teria o mesmo significado que uma saída autoconsciente da coesão destrutiva do sistema do mercado e da produção de mercadorias. Entende-se por si que uma tal saída não se realizaria de uma hora para outra, mas a passos lentos. Porém os primeiros passos podem ser feitos desde já. Estes passos poderiam constar da construção de novas estruturas cooperativas de reprodução que não visassem a produção para o mercado, mas a satisfação, em primeiro plano, das necessidades dos cooperativistas participantes. Não penso apenas numa produção agrícola, apesar de saber que o abastecimento de alimentos é elementar. Isto também implicaria no papel importante da luta pelo solo e pela terra. Mas, nas cidades, existem possibilidades de uma construção de cooperativas de produção e consumo, que por sua vez podem fomentar a troca entre si, criando pouco a pouco um setor autônomo e posto na rede de uma economia orientada pelas necessidades. Isto não significa retirar do Estado as responsabilidades ou desistir de reivindicações políticas. Os meios de produção e os recursos necessários (prédios, máquinas, matérias primas, etc.), como também os espaços livres jurídicos, precisam ser conquistados. Além disso, um tal setor orientado pelas necessidades certamente ficará ainda um bom tempo dependente de fluxos monetários e materiais, pois o alcance e as possibilidades de produção, no início, seriam bastante limitados. Também nesse sentido podem ser aproveitados os Estados, a Igreja e as ONGs, que podem prestar esse apoio.

Não pretendo aqui, absolutamente, apresentar receitas, mas apontar um horizonte que precisa ser meditado face à crise fundamental do sistema capitalista globalizado, já que não resta nenhuma perspectiva emancipatória, como a busca de caminhos que saiam das formas de coação: mercadoria, dinheiro e mercado. Isso não vale apenas para o Terceiro Mundo, mas, também, para o mercado mundial, para o centro do mercado mundial, apesar de ser necessário um relacionamento específico com as formas da crise e das condições sociais. Nesse sentido, será de importância capital desenvolver novas formas de cooperação global "de baixo para cima", que ultrapassem o "trabalho tradicional de solidariedade". O primeiro passo é uma questão de consciência. É o momento de abandonar a fixação no sistema da produção de mercadorias capitalistas enquanto única forma possível de socialização moderna.

1. Para dar um exemplo, a empresa Siemens, a maior empregadora privada na Alemanha (203 mil empregados), afirmou ter conseguido um recorde de lucros para o ano de 1995/1996. Ao mesmo tempo, foi reduzido a doze mil o índice de empregos nos últimos três anos, e para o ano de 1998 está prevista uma redução de mais de 6 mil empregos, ou seja, o crescimento da empresa elimina empregos.

2. Este item foi reformulado após o simpósio. Ele retoma a discussão que foi realizada em torno do conceito de exclusão, por ocasião do evento.

* Comunicação apresentada durante o simpósio O Fenómeno Migratório no Limiar do Terceiro Milénio, realizado em S. Paulo, de 18 a 21 de Novembro de 1996.

Traduzido do alemão por Heinz Dieter Heidemann.

** Grupo Krisis. lnstitut für kritische Sozialwissenschaften, Nürnberg/Erlangen.

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