Norbert Trenkle - O que é o valor ?

O que é o valor ?

A que se deve a crise ? *

Norbert Trenkle

O arco de questões que eu gostaria de debater é muito amplo. Vai do nível mais fundamental da teoria do valor, ou melhor, da crítica do valor - isto é, o nível das categorias fundamentais da sociedade produtora de mercadorias: trabalho, valor, mercadoria, dinheiro - até o nível no qual estas categorias fundamentais aparecem reificadas e fetichizadas, aparentemente como fatos "naturais" e "coerções objetivas". Neste nível – o do preço, lucro, salário, circulação etc. – ao mesmo tempo vêm à luz, abertamente, as contradições internas da moderna sociedade da mercadoria; aqui mostra-se sua derradeira insustentabilidade histórica: isto é, sob a forma de crise. É óbvio que aqui, na brevidade que me é concedida, não posso fornecer mais que um esboço, mas espero que eu obtenha sucesso em fazer as correlações essenciais compreensíveis.

Para obtermos um ponto de partida, eu gostaria de começar com uma categoria que é aceita comumente como uma condição inteiramente óbvia da existência humana: o "trabalho". Esta categoria permanece em grande parte não problematizada mesmo em O Capital de Marx, e é introduzida nele como característica antropológica que vale para qualquer sociedade em todos os lugares e sempre. "Como criador de valores de uso", escreve Marx, "como trabalho útil, o trabalho é uma condição da existência humana, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza, e, portanto, da vida humana" (Das Kapital, I. MEW, 23, p.57; ed. brasileira: O Capital, Liv. I, 1, São Paulo, Nova Cultural, 1988, p.50).

Porém, a categoria "trabalho" para Marx não é tão sem problemas como aparece nesta citação. Em outros lugares, especialmente nas obras denominadas de juventude, ele adota tons bem mais críticos. Em um manuscrito só publicado em 1972, uma crítica ao economista alemão Friedrich List, ele fala expressamente da superação do trabalho como pressuposto para a emancipação. Ali ele escreve: "O 'trabalho' é, em sua essência, a atividade não-livre, não-humana, não-social, determinada pela propriedade privada e criando a propriedade privada. A superação da propriedade privada somente se tornará uma realidade efetiva quando ela for concebida como superação do 'trabalho'." (Marx, 1972, p.436). Também no próprio O Capital há certas passagens que ainda fazem lembrar desta compreensão primeva. Porém, não vou aqui entrar nas ambivalências de Marx em relação ao "trabalho" (sobre isso p.ex. vide Kurz, 1995), mas eu gostaria de ir diretamente à questão, que é sobre esta própria categoria. O "trabalho" é de fato uma constante antropológica ? Podemos fazer dele um ponto de partida não-problemático para uma análise da sociedade da mercadoria como tal ? Minha resposta é um inequívoco não.

Marx distingue entre trabalho abstrato e concreto e nomeia, deste modo, o duplo caráter específico do trabalho na sociedade produtora de mercadorias. Ele sugere com isto (e também declara isto explicitamente), que somente no nível desta duplicação ou cisão se realiza um processo de abstração. O trabalho abstrato é abstrato enquanto não leva em conta as propriedades materiais concretas e peculiaridades em cada uma de suas atividades específicas - seja atividade de costura, marcenaria ou açougueiro - reduzindo-as a um terceiro termo comum. Marx negligencia, aqui, porém (e o marxismo de qualquer modo não desenvolveu qualquer consciência problematizadora neste plano), que o trabalho já é uma abstração como tal. Não, é claro, uma simples abstração do pensamento, tal como árvore, animal ou planta, mas uma poderosa abstração real historicamente imposta, que coage as pessoas sob seu poder violento. Abstrair (abstrahieren) significa literalmente subtrair (abziehen) ou subtrair de algo. Em que sentido o trabalho é uma abstração (Abstraktion), portanto, uma subtração/separação (Abzug) de algo ? O que é social e historicamente específico no trabalho não é, evidentemente, que as coisas em geral sejam produzidas e realizadas por atividades sociais bastante diferentes. Isso, de fato, toda sociedade precisa fazer. O específico é a forma na qual isto acontece na sociedade capitalista. Para esta forma social, é essencial que o trabalho já de saída seja uma esfera separada, destacada do resto do contexto social. Quem trabalha apenas trabalha e não faz nada diferente disso. Descansar, divertir-se, seguir seus próprios interesses, namorar etc. isto tudo tem de acontecer fora do trabalho, ou pelo menos não pode ter um efeito perturbador sobre os processos funcionais plenamente racionalizados. É natural que isso nunca possa ter êxito por completo, porque o homem, apesar do adestramento secular, simplesmente não pode ser convertido totalmente em máquina. Mas fala-se aqui, sim, de um princípio estrutural que empiricamente nunca ocorre com pureza total - embora o processo de trabalho empírico já corresponda de forma muito ampla, pelo menos na Europa Central, a esse tipo ideal terrível. Por esta razão, portanto, com base na exclusão de todos os momentos de não-trabalho da esfera do trabalho, a imposição histórica do trabalho caminha junto com a formação exterior de esferas sociais cada vez mais separadas, nas quais esses momentos cindidos são banidos; esferas que ganham elas mesmas um caráter exclusivo (no sentido enfático da palavra exclusão, por conseguinte, expulsão): tempo livre, privacidade, cultura, política, religião etc.

A condição estrutural essencial para esta cisão do contexto social é a moderna relação de gêneros com suas atribuições dicotomisadas e hierarquizadas entre masculinidade e feminilidade. A esfera do trabalho cai inequivocamente no reino do "masculino", para o qual os requisitos subjetivos já se remetem e que aqui são colocados: racionalidade funcional abstrata, objetividade, pensamento formal, orientação para a concorrência etc.; requisitos que as mulheres obviamente também precisam fazer jus se quiserem "ser alguém" na profissão. Porém, este reino do masculino somente pode existir estruturalmente ante o pano de fundo do reino cindido do feminino colocado sob posição inferior. Neste reino o homem trabalhador pode se regenerar, pois ali idealmente a esposa-dona de casa fiel e prestativa cuida do seu bem-estar corporal e emocional. Este contexto estrutural, que a ideologia burguesa desde sempre idealizou e romantizou (em inumeráveis glorificações pomposas da esposa e mãe amáveis e dispostas ao sacrifício), foi mais que suficientemente analisado e verificado na pesquisa feminista dos últimos 30 anos. Neste sentido, pode-se sem dúvida sustentar a tese de que o trabalho e a moderna e hierárquica relação de gênero estão inseparavelmente entrelaçados. Ambos são princípios estruturais básicos da ordem social burguesa da mercadoria.

Não posso levar adiante a discussão deste contexto como tal, porque o tema de minha palestra é, na verdade, as mediações específicas e as contradições inerentes ao reino do trabalho, da mercadoria e do valor, estrutural e historicamente ocupado pelo masculino. Gostaria de voltar para esse tema. Anteriormente, eu havia notado que o trabalho, como forma específica da atividade da sociedade da mercadoria, já é per se abstrato pois que constitui uma esfera separada/abstraída (abgezogene) do contexto social remanescente. E, como tal, só existe em geral onde a produção de mercadorias já se transformou na forma determinante da socialização; isto é, no capitalismo, onde a atividade humana na forma do trabalho não serve a qualquer outra finalidade que à valorização do valor.

Contudo, as pessoas não entram nesta esfera do trabalho por livre vontade. Elas fazem isto porque foram separadas dos meios de produção e de existência mais elementares, num processo histórico longo e sangrento, e agora só podem sobreviver se se venderem por certo tempo, ou mais exatamente, se elas venderem a sua energia de vida para um fim externo e indiferente, enquanto força de trabalho. Significa, pois, que o trabalho em princípio é uma subtração elementar da energia de vida e é, assim também, neste sentido, uma abstração altamente real. Só assim, de resto, dá certo a equação: trabalho = sofrimentos, tal como ainda nos traz o significado original do verbo laborare.

Finalmente, porém, a abstração também predomina na esfera do trabalho sob a forma de um regimento de tempo bastante específico, isto é, linear-abstrato e homogêneo. O que conta, o objetivamente mensurável, portanto, é o tempo separado do perceber, do sentir e do viver subjetivos dos indivíduos que trabalham. O capital alugou-os por um período de tempo bem definido, e neste período de tempo eles têm de produzir um output máximo de mercadorias ou serviços. Cada minuto que eles não despendem para isso, é, do ponto de vista do comprador da mercadoria força de trabalho, um desperdício. Cada minuto individual é valioso e conta, neste sentido, de forma igual enquanto ele representa literalmente valor potencial.

Historicamente, a imposição do regimento de tempo linear-abstrato e homogêneo representa uma das fraturas mais agudas em relação a todas as ordens sociais pré-capitalistas. Como se sabe, necessitou-se de muitos séculos de manifesta coerção e utilização de violência aberta até que a massa de pessoas tivesse interiorizado esta forma referencial de tempo e nada mais estranhassem; e começassem o dia de modo pontual num horário determinado na fábrica ou no escritório, entregassem a vida no portão e se submetessem por uma seção bem delimitada de tempo ao ritmo regular dos processos funcionais de produção predeterminados. Este fato bem conhecido por si só já demonstra quão pouco óbvia é a forma de atividade social imposta sob o nome de trabalho.

Se o trabalho enquanto tal, assim, não é uma constante antropológica, mas ele próprio já é uma abstração (entretanto, uma suprema e poderosa abstração social), o que isso tem a ver com o duplo caráter do trabalho que se representa nas mercadorias, tal como Marx analisa e que forma a base da sua teoria do valor ? Como se sabe, Marx afirma que o trabalho produtor de mercadorias tem dois lados: um concreto e um abstrato. Como trabalho concreto, ele é o formador de valores de uso, isto é, produtor de determinadas coisas úteis. Como trabalho abstrato, ao contrário, é o dispêndio de trabalho em geral, portanto, do trabalho para além de qualquer determinação qualitativa. Ele forma enquanto tal o valor representado nas mercadorias. O que permanece, porém, para além de toda determinação qualitativa? A única qualidade que todos os tipos diferentes de trabalho têm em comum, se se abstrai seu lado material-concreto, é o fato de serem espécies diferentes de dispêndio de tempo de trabalho abstrato. O trabalho abstrato é, então, a redução de todos os trabalhos produtores de mercadorias a esse denominador comum. A redução os faz comparáveis e assim mutuamente permutáveis, reduzindo-os à quantidade puramente abstrata reificada de tempo pretérito. Como tal, ele forma a substância do valor.

Quase todos os teóricos marxistas entenderam esta determinação conceitual, de forma alguma óbvia, como definição rasteira de um fato antropológico, quase uma lei natural, tendo-a ruminado irrefletidamente como tal. Eles nunca entenderam por que Marx fez tanto esforço no primeiro capítulo de O Capital, que foi reescrito muitas vezes, e por que ele "obscurece" desnecessariamente um assunto aparentemente tão plausível, através de uma linguagem hegeliana. Tão óbvio era o trabalho no marxismo, tão auto-evidente este lhe aparecia, que ele produziria valor num sentido totalmente literal, assim como o padeiro coze o pão, e o tempo de trabalho pretérito, como algo morto, é conservado no valor. Também no próprio Marx fica obscuro, porém, que o próprio trabalho abstrato já pressuponha lógica e historicamente o trabalho como forma específica de atividade social; que este é, então, a abstração de uma abstração; ou dito de outro modo, que a redução de uma atividade em unidades de tempo homogêneas pressuponha a existência de uma medida abstrata de tempo que domina a esfera do trabalho enquanto tal. Nunca teria entrado na cabeça de um camponês medieval, por exemplo, a idéia de fazer a colheita de seus campos sob a medida de horas e minutos, não porque ele não possuía nenhum relógio, mas porque esta atividade se dissolvia e se integrava em seu contexto de vida, e sua abstratificação temporal não tinha nenhum sentido.

Apesar de Marx não esclarecer suficientemente a relação do trabalho em si com o trabalho abstrato, ele não deixa qualquer dúvida, no entanto, sobre a loucura completa de uma sociedade na qual a atividade humana, isto é, um processo vivo, coagula-se na forma de coisa e se erige, como tal, enquanto poder social dominante. Marx ironiza a idéia corriqueira de que isto seria um fato natural. Quando, por exemplo, ele se opõe à teoria do valor positivista da economia política clássica, ele nota que: "Até agora, nenhum químico descobriu valor em pérolas ou diamantes" (Das Kapital, I, MEW 23, p.98; C. I, 1, p.78). Se Marx, deste modo, mostra que o trabalho abstrato constitui a substância do valor e assim se determina a magnitude do valor através da média do tempo de trabalho despendido, então, ele não cai, de forma alguma, na visão fisiologista e naturalista da economia clássica, tal como meu colega Michael Heinrich mostra em seu livro "A Ciência do Valor". Do mesmo modo que a melhor parte do pensamento burguês desde o Iluminismo em geral, a economia clássica compreende as relações burguesas até um certo grau, mas somente para declará-las em seguida, no entanto, sem mais, como "ordem natural". Marx critica esta ideologização das relações dominantes enquanto as decifra como reflexo fetichista de uma realidade fetichista. Ele mostra que o valor e o trabalho abstrato não são mera imaginação, que precisavam apenas ser tirados da cabeça das pessoas. Porém, sob condições do sistema de trabalho e da moderna produção de mercadorias, sempre já pressuposto e constituindo seu pensar e agir, seus produtos aparecem a eles como expressões reificadas do tempo de trabalho abstrato, como se eles fossem uma força natural. Suas próprias relações sociais se tornaram, para os homens burgueses, uma "segunda natureza", tal como Marx apropriadamente formula. Nisto consiste o caráter de fetiche do valor, da mercadoria e do trabalho.

Alfred Sohn-Rethel cunhou o conceito de abstração real para esta forma enlouquecida de abstração. Ele queria denominar com esse conceito um processo de abstração que não é executado através da consciência das pessoas como ato de pensamento, mas que é pressuposto no pensar e agir como estrutura apriori de síntese social e que os determina. Para Sohn-Rethel, a abstração real era, porém, idêntica ao ato da troca; ela domina portanto onde as mercadorias se confrontam na conexão funcional do mercado. Só aqui, de acordo com seu argumento, o desigual torna-se igual, coisas qualitativamente diferentes são reduzidas a um terceiro termo comum: ao valor ou ao valor de troca. Em que consiste, entretanto, este terceiro termo comum ? Se mercadorias diferentes são levadas a um denominador comum, ao valor ou ao valor de troca, como expressões de magnitudes diferentes de quantidade abstrata, deve-se ser capaz também de declarar qual é o conteúdo deste valor ominoso e qual sua medida. As respostas a isto Sohn-Rethel fica devendo. Isso se origina, por último e não por isso menos importante, em função do seu conceito reduzido, quase podemos dizer, mecanicista, do contexto da sociedade da mercadoria.

Assim, a esfera do trabalho aparece como um espaço pré-social no qual os produtores privados ainda fabricam seus produtos completamente não influenciados por qualquer forma socialmente determinada. Só a posteriori eles lançam seus produtos como mercadorias na esfera da circulação, onde, então, na troca, se abstrai de suas particularidades materiais (e com isto, indiretamente, do trabalho concreto despendido neles), onde assim eles se transformam em portadores de valor. Este ponto de vista, que separa a esfera da produção da circulação opondo-as externamente, não atinge o nexo interno do moderno sistema produtor de mercadorias. Sohn-Rethel confunde sistematicamente aqui dois níveis de reflexão: primeiramente, a seqüência cronológica necessária de produção e venda de uma mercadoria singular. E secundariamente, a unidade lógica e social real do processo de valorização sempre já pressuposta neste processo singular.

Eu gostaria de me estender por aqui um pouco mais detalhadamente, pois de maneira alguma este modo de ver é uma especialidade de Sohn-Rethel, mas, ao contrário, é difundido em diferentes variantes. Também no livro mencionado de Michael Heinrich, encontra-se isso a todo momento. Heinrich afirma aqui (para selecionar só uma citação entre muitas) que, "os corpos das mercadorias recebem sua objetividade de valor apenas aparece dentro da troca", e continua então como segue: "Isoladamente, observado por si mesmo, o corpo da mercadoria não é mercadoria, mas mero produto" (Heinrich, 1991, p.173). É claro que Heinrich não tira desta ou outras afirmações semelhantes as mesmas conclusões teóricas de Sohn-Rethel, mas elas estão na lógica da sua própria argumentação. Mas, apenas através de construções teóricas de apoio pouco convincentes (no núcleo: através da separação entre forma-valor e substância do valor), ele pode esquivar-se (vide: Heinrich 1991, p.187, como também a crítica de Backhaus/Reichelt, 1995).

É evidente que os produtos não são fabricados no processo de produção capitalista como coisas úteis inocentes que alcançam o mercado a posteriori o mercado, mas cada processo de produção é de antemão direcionado à valorização do capital e correspondentemente organizado. Quer dizer, os produtos já são fabricados na forma fetichista da coisa-valor; eles devem atender a apenas um fim: representar o tempo de trabalho abstrato despendido para sua produção na forma de valor. A esfera da circulação, o mercado, não serve então simplesmente à troca de mercadorias; ao contrário, é o lugar no qual o valor representado nos produtos é realizado ou pelo menos deveria ser realizado. Para que isto possa em geral ter êxito (isto porém é condição necessária mas não suficiente), as mercadorias devem ser, como se sabe, também coisas úteis; porém, coisas úteis apenas para o comprador potencial. O lado material-concreto da mercadoria, portanto, o valor de uso, não é o sentido e a finalidade da produção, mas simplesmente um certo efeito colateral inevitável. Do ponto de vista da valorização bem que se poderia desistir disto (e em certo sentido, isto também acontece na medida em que se produz maciçamente coisas totalmente absurdas ou para serem desgastadas em curtíssimo tempo), porém, o valor não se realiza sem um suporte material. Pois ninguém compra "tempo de trabalho morto" enquanto tal, mas só se este se representa num objeto, cujo comprador, de alguma maneira, atribui algum benefício.

Por isso também, o lado concreto do trabalho, de maneira alguma, permanece intocado pela forma pressuposta de socialização. Se o trabalho abstrato é a abstração de uma abstração, então, o trabalho concreto representa apenas o paradoxo de ser o lado concreto de uma abstração (isto é, da forma-abstração "trabalho"). "Concreto", apenas no sentido bastante estreito e limitado, de que mercadorias diferentes necessitam de processos de produção materialmente diferentes: um carro é produzido diferentemente de uma pílula de aspirina ou um apontador de lápis. Porém, também estes processos de produção se comportam técnica e organizacionalmente frente à finalidade implícita da valorização, de maneira alguma enquanto neutra. Provavelmente, não é preciso explicar com detalhes como é ordenado o processo de produção capitalista, neste sentido: ele é única e exclusivamente organizado conforme a máxima: o maior número de produtos possível dentro do menor tempo possível. Isso ganha o nome, então, de eficiência de economia empresarial. O lado concreto-material do trabalho é, então, nada mais que a forma palpável, na qual a ditadura do tempo do trabalho abstrato confronta e coage a atividade dos trabalhadores sob seu ritmo.

A esse respeito é também absolutamente correto afirmar que as mercadorias produzidas no sistema do trabalho abstrato já representam valor mesmo se ainda elas não tiverem, contudo, entrado na esfera da circulação. Que a realização do valor possa falhar, que as mercadorias se tornem invendáveis ou então só possam ser vendidas bem abaixo do seu valor, subjaz na lógica da coisa, que envolve, porém, um nível totalmente diferente do problema. Porque, afinal, para adentrar no processo de circulação, um produto já deve se encontrar na forma fetichizada da coisa-valor; e, já que ela é, como tal, nada mais que a representação de trabalho abstrato pretérito (o que significa que sempre também é de tempo de trabalho abstrato pretérito), também possui já necessariamente sempre uma determinada magnitude de valor. Pois como pura forma sem substância (isto é, sem o trabalho abstrato), o valor não pode existir sem entrar em crise e, finalmente, quebrar.

Agora bem, a grandeza de valor de uma mercadoria não é determinado, como se sabe, pelo tempo de trabalho imediatamente gasto na sua fabricação individual, mas pela média de tempo de trabalho socialmente necessária. Esta média não é, por outro lado, uma grandeza fixa, mas altera-se em relação ao nível de produtividade vigente em cada momento (o que significa, na tendência secular, a baixa do tempo de trabalho necessário por mercadoria, e, assim também, da quantidade de valor representada). Enquanto medida do valor, ela está, contudo, sempre já pressuposta em cada processo de produção individual e reina dentro desta como inexorável soberana. Um produto representa, assim, uma determinada quantidade de tempo de trabalho abstrato apenas até onde ela possa resistir frente ao tribunal do padrão de produtividade social. Se numa empresa se trabalha de forma sub-produtiva os seus produtos não representam obviamente mais valor do que aqueles produtos que foram fabricados sob as condições médias sociais. Assim, essa mesma empresa tem de fazer subir, em certo prazo, sua produtividade, ou terá de desaparecer do mercado.

Uma pequena confusão neste contexto é que a objetividade de valor e a magnitude do valor não aparecem no produto individual, mas apenas na troca de mercadorias; portanto, somente se eles entram em relação direta com outros produtos do trabalho abstrato. O valor de uma mercadoria aparece, então, em outra mercadoria. Assim, por exemplo, o valor de 10 ovos pode se expressar em 2 quilos de farinha. Com a produção de mercadorias desenvolvida (e é dela que aqui sempre falamos), o lugar desta outra mercadoria é ocupado por um equivalente geral: o dinheiro, no qual se expressa o valor de todas as mercadorias e que funciona como medida do valor social. Dizer que o valor na forma de valor de troca só aparece no nível da circulação já pressupõe aqui a compreensão de que ele não surge daqui como consideram Sohn-Rethel e outros teóricos da troca, assim como também todos os representantes da doutrina subjetiva do valor; a compreensão, portanto, de que há uma diferença entre a essência do valor e suas formas de manifestação.

A doutrina subjetiva do valor, que com seu raso empirismo se assenta na aparência da circulação, sempre zombou da teoria do valor-trabalho como metafísica, uma acusação que está novamente em conjuntura alta sob as vestes pós-modernas. Sem querer, ela revela algo sobre o caráter fetichista da sociedade produtora de mercadorias. Quando as relações sociais reificadas se lançam sobre as pessoas como poder cego: o que é isso senão metafísica encarnada ? A doutrina subjetiva do valor, mas também o positivismo marxista, se amparam no fato de que o valor não pode ser apreendido, de maneira alguma, como coisa empírica. Porque, de fato, nem a substância de trabalho pode ser filtrada das mercadorias, nem em geral podem ser calculados de forma consistente os valores das mercadorias a partir do nível da aparência empírica (isto é, a partir do nível dos preços). "Onde está então o ominoso valor ?" – perguntam nossos positivistas, só para imediatamente em seguida descartar todo esse questionamento. Pois algo que não é empiricamente palpável e mensurável não existe em sua visão de mundo.

Esta crítica encontra, contudo, uma variante bruta da teoria do valor-trabalho, ela mesma positivista, que é certamente típica da maior parte do marxismo. Pois ele, o marxismo, sempre adotou positivamente a categoria do valor num duplo sentido: em primeiro lugar, como já mencionado, considerava-se o valor realmente como um fato natural ou antropológico. Aparecia, assim, como algo completamente óbvio, que o trabalho pretérito ou o tempo de trabalho pudesse ser literalmente conservado como coisa nos produtos. Contudo, pelo menos precisava poder ser feita a prova aritmética de como resulta do valor de uma mercadoria um preço divergente. E, em segundo lugar, só assim era conseqüente tentar dirigir a produção social com a ajuda desta categoria apreendida positivamente. A principal objeção que soava contra o capitalismo era, assim também, de que no mercado os "valores reais" dos produtos seriam velados e não trazidos à sua validade. No socialismo, ao contrário disso, conforme uma célebre frase de Engels, seria calculado facilmente quantas horas de trabalho "estariam alocadas" em uma tonelada de trigo ou de ferro.

Esse foi o cerne do programa de todo o socialismo real condenado ao fracasso, e, em forma diluída, também daquele da social-democracia, que foi pré-pensado por legiões inteiras dos assim chamados economistas políticos, inclusive crítico-construtivamente acompanhados. Isso estava destinado ao fracasso porque o valor não é uma categoria empírica que segundo sua essência possa ser tornada uma coisa apreensível, mas ele se impõe de modo fetichista por trás das costas dos homens que agem, dominando-os como leis cegas. É, porém, uma contradição em si querer dirigir conscientemente uma relação inconsciente. A punição histórica para essa tentativa não podia, deste modo, não acontecer.

Se eu disse até agora, porém, que o valor é uma categoria não-empírica, isso também significa que ele não possui nenhuma relevância para o desenvolvimento econômico real ? Naturalmente que não. Isso apenas significa que o valor não pode se tornar algo como uma coisa material, mas tem de perpassar por diversos níveis de mediação antes de aparecer sob formas metamorfoseadas na superfície econômica. O que Marx consegue em O Capital, é demonstrar o nexo lógico e estrutural destes níveis de mediação. Ele mostra como as categorias da superfície econômica tais como preço, lucro, salário, juros etc. podem ser derivadas da categoria do valor e de sua dinâmica interna de movimento e também podem ser perseguidas analiticamente. De maneira alguma, contudo, ele se perdeu na ilusão de que estas mediações poderiam ser calculadas empiricamente no caso particular, tal qual exigiam a doutrina dos economistas nacionais e o marxismo positivisticamente desarmado (entretanto, sem eles mesmos nunca poderem atender a esta pretensão). Porém, isto não se trata de qualquer deficiência da teoria do valor, mas se refere somente à inconsciência destas mediações. Marx, no entanto, nunca teve a pretensão de formular uma teoria positiva que até pudesse servir como instrumento político-econômico. Sua preocupação era antes comprovar a loucura, a contraditoriedade interna e assim, finalmente, a insustentabilidade da sociedade baseada no valor. Neste sentido, sua teoria do valor é, em seu cerne, uma crítica do valor (não por acaso, sua principal obra leva como subtítulo "crítica da economia política"), e ao mesmo tempo, essencialmente uma teoria da crise.

A fundamentação empírica da crítica do valor em geral e da teoria da crise, em particular, não pode ser, conforme a lógica interna da coisa, feita em forma de um matematização exata quase-científico natural. Onde este padrão metódico é aplicado apriori, como no famigerado debate sobre a transformação-dos-valores-em-preços do marxismo acadêmico, o conceito de valor e o seu contexto total, por ele constituído, já é fundamentalmente não apreendido. É verdade que a crítica do valor e a teoria de crise podem ser fundamentados empiricamente, só que o método precisa recuperar as mediações e contradições internas de seu objeto. O que isto significa concretamente, eu aqui apenas posso insinuar. Tomemos, por exemplo o resultado fundamental da teoria da crise de que o capital, desde os anos setenta, através da expulsão mundial absoluta de sua força de trabalho vivo do processo de valorização, alcançou os limites históricos de sua própria força de expansão e também com isto, sua própria capacidade de existência. Dito com outras palavras: a moderna produção de mercadorias entrou em processo de crise fundamental, que só pode desembocar na sua decadência.

Este dado não está baseado, é claro, numa derivação puramente lógico-conceitual, mas resulta da recuperação teórica e empírica das rupturas estruturais no sistema mundial produtor de mercadorias, desde o fim do fordismo. A isto pertence também, como fato fundamental, aquele derretimento da substância-trabalho (portanto, do tempo de trabalho abstrato despendido sobre o alto nível de força produtiva dominante), nos setores produtivos centrais da produção para o mercado mundial; ainda mais, a progressiva retirada do capital de grandes regiões mundiais que estão sendo desacopladas em grande parte dos fluxos comerciais e de investimentos e deixadas por sua própria conta. Finalmente, coloca-se também nesse contexto o vigoroso e desenfreado insuflamento dos mercados de crédito e especulação; que ali, se acumule capital fictício numa medida histórica nunca existente, explica, por um lado, porque a eclosão da crise nas regiões centrais dos mercados mundiais se realizou relativamente de modo suave até agora; mas permite presumir também, por outro lado, a força avassaladora dos processos de desvalorização que estão por agora em breve eclodir.

Certamente uma teoria da crise criticamente fundamentadada na crítica do valor pode fazer diagnósticos errados, e não pode antecipar qualquer forma de percurso do processo de crise, embora ela também possa ser aprovada em análises de detalhe. De qualquer maneira, porém, pode provar teórica e empiricamente que não haverá nenhum novo impulso de acumulação secular, mas antes, que o capitalismo entrou, irreversivelmente, numa era de declínio e desintegração barbáricos. Esta prova necessariamente coincide com a crítica implacável ao trabalho, à mercadoria, ao valor e ao dinheiro e não persegue nenhuma outra meta senão a superação destas abstrações reais fetichistas; e deste modo, também, será superado seu próprio âmbito de validade: a auto-superação da teoria do valor.

(*) Texto revisto a partir de um texto de seminário realizado em 24 de junho de 1998 na Universidade de Viena. (Tradução de Cláudio Roberto Duarte com o auxílio de Heinz Dieter Heidemann).

(1) Recorde-se aqui da etimologia latina de "ab-stração" = "separar, apartar, retirar, afastar de um estrato subjacente". Assim também as palavras que conotam "corte, privação, separação, supressão" tais como "ablação, ablegação, abstenção, ab-rogação". Aqui, o autor usa primeiramente o verbo "abstrair" através do radical latino – abstrahieren – e, em seguida, seu sinônimo com radical germânico – abziehen – "subtrair, tirar"; de modo que já o verbo ziehen significa "puxar, sacar, extrair, arrancar" (N.d.T.).



Bibliografia:

Backhaus, Hans-Georg/Reichelt, Helmut: Wie ist der Wertbegriff in der Oekonomie zu konzipieren? in: Engels' Druckfassung versus Marx' Manuskript zum III. Buch des "Kapital" (Beitraege zur Marx-Engels-Forschung, Neue Folge), Hamburg, 1995, S. 60 – 94.

Heinrich, Michael: Die Wissenschaft von Wert, Hamburg, 1991.

Kurz, Robert: "Postmarxismus und Arbeitsfetisch". Krisis 15, Bad Honnef, 1995.

Marx, Karl: "Ueber Friedrich Lists Buch "Das nationale System der politischen Oekonomie", in: Beitraege zur Geschichte der Arbeiterbewegung, 14. Jg., Heft 3, 1972, S. 423 - 446 ders.

_____. Das Kapital, I, MEW 23.

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