O CASO SINGER OU A ÉTICA DO HOMICÍDIO

O CASO SINGER OU A ÉTICA DO HOMICÍDIO

(Comentário ao livro de Peter Singer, Ética Prática (1979), Lisboa, Gradiva, 2000)

Por José Paulo Vaz



I. - PETER SINGER, nascido na Austrália em 1946, não pode queixar-se de não ser conhecido. As suas teses sobre os direitos dos animais granjearam-lhe a atenção geral da opinião publicada e um interesse pelos seus livros que a qualidade da sua obra, no plano filosófico, não justifica.

Singer estudou em Oxford e Melbourne e ensinou em diversas universidades na Austrália, Inglaterra e Estados Unidos da América. É actualmente professor de Filosfia e Director do Instituto para Ética e do "Centro de Bioética" da Universidade Monash em Melbourne. Tornou-se internacionalmente conhecido com a sua obra "Animal liberation", que encontrou um profundo eco junto das associações de protecção dos animais.

Em 1979 publicou, em inglês, a obra "Ética Prática", baseada na doutrina Utilitarista do inglês Jeremy Bentham (1748-1832), em que defende teses polémicas sobre a legitimidade moral da eliminação dos seres humanos menos conscientes ou autónomos como crianças e deficientes.

A polémica em torno da obra de Singer surgiu de forma explosiva quando, no Verão de 1989, foi convidado para proferir, na Alemanha, conferências no "Simpósio sobre Biotecnologia, Ética e deficiência mental." A sua intervenção foi boicotada, sobretudo pelas associações de defesa dos deficientes. A sua conferência na Universidade de Saarbrücken foi impedida, através de assobios e pela vaia da assistência. Na Universidade de Bochum, no Norte da Alemanha, um curso dedicado à Ética Prática foi mesmo anulado, devido aos contínuos protestos do público.

Como reconhece o próprio autor "na Alemanha, Áustria e Suíça a contestação às perspectivas apresentadas neste livro atingiu um ponto tal que as conferências para que fui convidado tiveram de ser canceladas e as aulas das disciplinas em universidades alemãs em que o livro iria ser usado sofreram tantos distúrbios que não puderam prosseguir". O autor, talvez ingenuamente, acrescenta que tais acontecimentos devem constituir um motivo de reflexão na perspectiva da garantia da liberdade de pensamento. Peter Singer tem sem dúvida o direito de exprimir livremente as suas opiniões – o que Peter Stinger não parece entender é que é a mesma liberdade de expressão que autoriza a exprimir contra elas um veemente protesto.

Singer não é um defensor do Nacional-Socialismo, mas as suas teses aproximam-se bastante das teses defendidas e aplicadas pelo regime Nacional-Socialista na Alemanha, entre 1933 e 1945. Singer não parece compreender o carácter moralmente chocante – além de infundamentado e insensato – das comparações entre seres humanos e animais:

"Note-se, contudo, que este mesmo argumento nos dá razões para preferir utilizar bebés humanos – talvez órfãos – ou seres humanos com deficiências intelectuais profundas em vez de adultos [para realizar experiências científicas extremamente dolorosas ou letais], uma vez que os bebés e os seres humanos com deficiências intelectuais profundas não fariam nenhuma ideia do que lhes iria acontecer. No que diz respeito a este argumento, os animais não humanos, os bebés e os deficientes intelectuais profundos estão na mesma categoria" (EP., p. 80).

Esta simples afirmação seria suficiente para demonstrar que as teses de Singer não passam de charlatanismo filosófico de mau gosto, que lhe podem permitir vender livros, mas não atingem a seriedade que se deve exigir a um filósofo.

II - ANIMAIS COMO PESSOAS E SERES HUMANOS COMO NÃO PESSOAS.

"Este uso da palavra ‘pessoa’ é, ele mesmo, infeliz, susceptível de criar confusões, dado que a palavra ‘pessoa’ é muitas vezes usada como sinónimo de "ser humano". No entanto, os termos não são equivalentes; poderia haver uma pessoa que não fosse membro da nossa espécie. Também poderia haver membros da nossa espécie que não fossem pessoas" (EP., p. 107).

"Há muitos seres sencientes e capazes de sentir prazer e dor que não são racionais nem autoconscientes e que, portanto, não são pessoas. Referir-me-ei a eles como seres conscientes. Muitos animais não humanos cabem quase de certeza nesta categoria, tal como crianças recém-nascidas e alguns seres humanos com deficiências mentais." (EP. 121).

Nas suas elucubrações utilitaristas, Singer demonstra uma grande insensatez, e uma profunda incultura filosófica – e até simplesmente humana – ao pretender anular a fronteira do humano relativamente ao mundo da Natureza em que se situam forçosamente os animais.

III - INFANTICÍDIO

Por ter abandonado o caminho – percorrido por tantos filósofos de fecundidade extraordinária no campo da Ética – de uma reflexão sobre o mundo humano e as suas implicações éticas, Singer perde completamente a capacidade de raciocinar sobre o bem e o mal, sobre o legítimo e o ilegítimo.

É isso que precisamente demonstram as suas desastradas teses sobre a eutanásia relativamente a crianças, deficientes e idosos.

"Um bebé recém-nascido de uma semana não é um ser racional e autoconsciente e há muitos animais não humanos cuja racionalidade, autoconsciência, consciência, capacidade de sentir, etc. excedem a de um bebé humano com uma semana ou um mês de idade. Se o feto não tem o mesmo direito à vida que uma pessoa, parece que o bebé recém-nascido também não tem e a sua vida possui menos valor para ele qe a vida de um porco, um cão ou um chimpazé possui para o animal. (...) Na verdade, algumas pessoas pensam que a vida de um bebé é mais preciosa do que a de um adulto. (...) Regra geral, como as crianças são inofensivas e moralmente incapazes de cometer um crime, quem as mata não possui as justificações avançadas com frequência no caso da morte de adultos. Nada disto mostra, porém, que matar uma criança seja tão mau como matar um adulto (inocente). (...) Pensar que a vida das crianças possui um valor especial porque as crianças são pequenas e engraçadas é o mesmo que pensar que uma foca bebé, com o seu pelo branco e macio e grandes olhos redondos merece mais protecção que um gorila, que não possui esses atributos. Tão-pouco pode o desamparo ou a inocência do Homo sapiens bebé constituir um motivo para o preferir ao igualmente desamparado Homo sapiens fetal ou, pelas mesmas razões, aos ratos de laboratório, que são "inocentes" exactamente no mesmo sentido em que o são os bébés humanos e, atendendo ao poder que sobre eles têm os cientistas que fazem as experiências, quase igualmente indefesos. Se conseguirmos pôr de lado estes aspectos emocionalmente comoventes, mas estritamente irrelevantes, da morte de um bébé, podermos ver que os motivos para não se matarem pessoas não se aplica aos bebés recém-nascidos.

A razão indirecta do utilitarismo clássico não se aplica porque ninguém que seja capaz de compreender o que está a acontecer quando um bebé recém-nascido é morto se pode sentir ameaçado por uma política que desse menor protecção aos recém-nascidos do que aos adultos. A este propósito, Bentham tinha razão em descrever o infanticídio como sendo ‘de uma natureza que não traz a menor inquietude à imaginação mais medrosa’. A partir do momento em que temos idade suficiente para compreender uma política desse género, somos demasiado velhos para nos sentirmos ameaçados por ela.

Do mesmo modo, a razão do utilitarismo das preferências para respeitar a vida de uma pessoa não se pode aplicar a um bebé recém-nascido. Os bebés recém-nascidos não se podem encarar a si mesmos como seres que possam ter ou não um futuro e portanto não podem ter o desejo de continuar a viver. Pela mesma razão, se o direito à vida tem de se basear na capacidade de querer continuar a viver ou de se encarar a si próprio como um sujeito mental com continuidade, um bebé recém-nascido não pode ter direito à vida. Por fim, um bebé recém-nascido não é um ser autónomo, capaz de efectuar escolhas, logo matar um bebé recém-nascido não viola o princípio do respeito pela autonomia. Em tudo isto, o bebé recém-nascido está em pé de igualdade com o feto – daí que existam menos razões contra a morte tanto de bebés como de fetos do que daqueles seres capazes de se encarar a si próprios como entidades distintas existentes ao longo do tempo." (EP. pp. 190-192)

Em bases puramente éticas, matar uma criança recém-nascida não é comparável a matar uma criança mais velha ou um adulto. (EP, p. 192)

IV – EUTANÁSIA DOS DEFICIENTES.

"(É) necessário perguntar se a morte do bebé hemofílico levaria à criação de outro ser que de outro modo não teria existido. Por outras palavras, se provocarmos a morte ao bebé hemofílico, os seus pais terão outro filho que não teriam se o filho hemofílico vivesse? (...) Se matar a criança hemofílica não tiver efeitos adversos nos outros, de acordo com a perspectiva total seria um bem fazê-lo" (EP. p. 206)

"Que razões há para aceitar a doutrina dos actos e omissões ? Há pouco quem defenda que a doutrina em si mesma represente um princípio ético importante" (EP. p. 226)

"Não existe qualquer diferença moral intrínseca entre matar e deixar morrer. (...) Se não existe diferença moral intrínseca entre matar e deixar morrer, a eutanásia activa também deveria ser aceite como humanitária e apropriada em certas circunstâncias" (EP. p.229).

V – A ÉTICA PRÁTICA E O NAZISMO.

As teses de Singer acima sumariadas revelam uma semelhança flagrante com as ideias defendidas pelo Nacional-Socialismo relativamente à eliminação dos seres humanos considerados inferiores racialmente, por deficiência ou doença.

Eugen Stähle (1890-1948), médico e conselheiro para a política de saúde do Governo do III.º Reich, Director da Direcção X do Ministério do interior do Estado de Württemberg e principal responsável pela execução, em 1940/41, de um programa de eutanásia – nome de código "acção T4" - de mais de 4000 doentes, assassinados em Grafeneck, proclamava em 1941:

"Onde a vontade de Deus realmente vigora e é aplicada, ou seja, na Natureza, não existe piedade para com os fracos e os doentes... o Quinto Mandamento: "não matarás" não é um mandamento de Deus, mas uma invenção dos Judeus" (citado por Kathrin Heinsohn, Nationalsozialistische Ideologien heute? Das Thema Peter Singer)

Curiosamente, também para Singer, "a alteração da atitude para com o infanticídio desde o tempo dos Romanos é, como a doutrina da santidade da vida humana de que faz parte, um produto do cristianismo". Com este argumento, Singer viola as regras do debate racional. A origem de uma doutrina não é um argumento a favor ou contra a sua veracidade.

VI – A ABOLIÇÃO DO HUMANO E A NATURALIZAÇÃO DA ÉTICA

Os pressupostos filosóficos da Ética Prática assentam, como o Nacional-Socialismo, no erro a que poderíamos chamar a "Naturalização da Ética", cuja base é a redução do Homem à espécie homo sapiens, expressamente afirmada por Singer (EP., p. 106).

A distinção entre humanidade e animalidade passa precisamente pela distinção entre "mundo" e natureza. É verdade que o ser humano também é um ser natural, no sentido em que o seu corpo é um organismo sujeito às leis da física, da química, da biologia, etc. Mas o humano só surge num plano que transcende este. A definição do ser humano como espécie não atinge a sua diferentia specifica, ou seja, a sua humanidade. O que é humano no Homem não é o facto de se alimentar, de respirar, de se reproduzir, como todos os outros seres vivos. A humanidade do Homem consiste em que ele é o único ser que, estando na Natureza, continuamente transcende a Natureza:

"Na verdade, o Homem vive, como ser vivo, também submetido às leis da Natureza. Não pode viver sem respirar, sem se alimentar, sem se reproduzir, a não ser determinado pela Natureza. Mas, simultaneamente, existe de um modo que é largamente indeterminado e aberto a diferentes possibilidades. A proximidade do Homem relativamente aos outros seres animais ao mesmo tempo da sua separação deles, torna o Homem, mesmo biologicamente, um enigama" (Karl Löwith, Natur und Humanität des Menschen, p. 183).

O que é específico do humano é que o Homem é o único ser que tem de construir um mundo. Não pode existir vida humana fora de um mundo cultural, do mundo a que o último Husserl chamou "Lebenswelt" (Mundo da Vida). É a própria cultura que é a natureza do homem; fora deste mundo cultural pode conceber-se o homem como espécie, mas não a humanidade do homem.

Por isso, no preciso momento em que nascemos, nascemos plenamente humanos, porque nascemos para o mundo da humanidade, o "mundo da vida", que, como a sua etimologia revela, é espaço ordenado e referido ao humano, dotado de um sentido ético e estético, como se depreende da raiz filolólica, conservada na língua portuguesa - "mundo" contrapõe-se a imundo. O mundo é a esfera da vida humana, onde o homem nasce e morre. E, por isso, o mundo se configura primacialmente com e como linguagem e o Homem se define como ser dotado de linguagem - na definição insuperável dos Gregos, "zoón lógon ékon". O Homem, como escreve lapidarmente Paul Ricoeur, é o único ser que tem um mundo e não apenas uma situação.

Não diminui a nossa consideração por todos os seres considerá-los submetidos aos imperativos da Natureza: um cão é sempre um cão, por muitas habilidades que tenha aprendido a fazer e cujo sentido desconhece; equiparar um cão a uma criança é de uma insensatez inaudita e filosoficamente um absurdo. E por muito "superior" que seja um chimpanzé, não é conhecido nenhum que tenha escrito um trecho de música.

O humano representa um corte absoluto (talvez inexplicável) com a ordem natural das coisas. Nada na Natureza pode explicar o aparecimento do humano; só o Homem, com a sua humanidade, e a sua Liberdade pode fazer no mundo algo que não pertence à Natureza: o músico Beethoven, por um insondável processo criativo, engendrou na sua mente, na sua imaginação (era surdo !) um extraordinário conjunto de sons, a que chamou Quinta Sinfonia: e eis que algo de completamente novo, de imprevisto, surgiu no mundo – a extraordinária música da nona sinfonia. Nada na ordem natural das coisas se encaminhava, nem que o mundo durasse mais quinhentos mil biliões de anos, para o nascimento desses admiráveis sons! Nem os rios, descendo as montanhas, nem as aves, assobiando nos bosques, nem os trovões, ribombando nos céus, poderiam originar, nem por fruto do mais leve acaso, um pequeno trecho, a mais pequena frase, da Nona Sinfonia.

A acção humana introduz no mundo uma ruptura fundamental: a produção de um acontecimento completamente subtraído à lógica dos acontecimentos da esfera da Natureza. Ora, a acção só é possível porque o homem é dotado de uma característica que totalmente o separa dos outros seres que com ele existem na natureza: o homem é o ser dotado de liberdade. A liberdade, como quer que a entendamos, não pode deixar de radicar nesta abertura para a criação de rupturas na estrutura dos eventos intramundanos. O homem é pois dotado desse terrível poder: o poder de agir.

Mas a acção, longe de ser algo de inerentemente positivo, é um poder terrível. Pois se o homem se define com ser de liberdade, devido à sua faculdade de agir, um ponto a acção tem em comum com a necessidade da natureza: a irreversibilidade do tempo. Podemos agir, criando no mundo o evento, mas já não podemos fazer com que aquele evento, que produzimos no mundo, possa deixar de existir. Isto é, somos prisioneiros da nossa responsabilidade moral.

VII - A ÉTICA COMO IMPERATIVO HUMANO

Existo como homem no mundo, entre os outros homens. Ser Homem é ser com os outros Homens, situação que os alemães, na sua incontornável linguagem filosófica, designam com o termo Mitmenschen. Só o homem é pessoa. Ser pessoa significa: sou único entre outros seres igualmente únicos. Único quer dizer insubstituível. Sou tão insubstituível como qualquer outro ser humano, como qualquer outra pessoa. É neste ponto, e não nas contas de merceeiro de Peter. Singer, que se coloca a exigência Ética.

Ser pessoa entre as outras pessoas implica uma responsabilidade moral. Ao contrário do que quer inculcar Singer, não preciso postular a existência de Deus para colocar uma regra ética, não inteiramente subjectiva, mas inerente às próprias estruturas objectivas da mundaneidade em que, como ser humano, co-existo, nas dimensões da espacialidade do meu ser, com os outros homens, e, é claro, com os outros seres. O outro homem, e a absoluta responsabilidade pelo outro – eis aí o absoluto ético. Não posso negar ao outro homem, qualquer que seja a situação em que ele se encontre – esteja ele doente ou apenas adormecido – a qualidade de sujeito ético. A dimensão da ética é a dimensão da responsabilidade – "o eu diante do outro, escreve Lévinas, é infinitamente responsável". A responsabilidade é infinita, porque nunca está plenamente satisfeita (nunca realizamos plenamente o humano) e porque se actualiza sempre que o outro Homem se aproxima da situação que tenho no mundo; ela é infinita e tanto maior quanto a situação do outro depende da minha resposta. A situação ontológica do Homem postula a resposta. A resposta é a responsabilidade originária perante o outro. Não posso conceber o Homem sem a responsabilidade pelo outro Homem. Não posso recusar a minha responsabilidade diante do outro – e ainda mais pelo carente, pelo diminuído ou pelo frágil – sem negar a minha própria humanidade. Por isso Singer, na sequência de todos os fascismos, é o expoente de um radical anti-humanismo.

VIII - VALOR HUMANO DO RECÉM-NASCIDO

Ao contrário do que pensa Singer, o recém-nascido é plenamente humano. Mais: o recém-nascido tem em si, em alto grau, todas as condições do humano, que nem o animal mais "desenvolvido" ou amestrado poderia igualar. Considerar a criança como menos desenvolvida que um animal releva de uma ignorância inaudita, que não pode deixar-se passar em claro.

A famosa psicóloga italiana, Maria Montessori, advertia para que não substimássemos a força da criança, enquanto portadora de uma autêntica humanidade:

"A criança não é um recipiente vazio que enchemos com os nossos conhecimentos e que tudo nos deve. Pelo contrário, a criança é o construtor do Homem e não existe ninguém que não tenha sido formado a partir da criança que um dia foi. As grandes energias criadoras da criança, de que já falàmos repetidamente e que despertaram o interesse dos cientistas, foram até hoje ocultadas por complexos de ideias construídos em torno da maternidade. Pensava-se: a mãe traz a criança ao mundo, ensina-lhe a falar, a andar, etc. Mas isso não é de modo nenhum a obra da mãe, mas uma conquista da criança. A mãe dá a criança à luz; mas o recém-nascido produz o Homem. O recém-nascido forma a partir de si o futuro Homem, ao integrar o seu meio ambiente. O reconhecimento desta grande obra produzida pela criança não significa a dissolução da autoridade dos pais; pelo contrário, se os pais estiverem conscientes de que não são os construtores mas os auxiliares da cconstrução, cumprirão muito melhor o seu dever e apoiarão a criança com muito maior visão" (Montessori, As crianças são diferentes, cit. por Werner Lenz, niemand ist ungebildet)

Também do ponto de vista linguístico, são de fulcral importância as descobertas de Chomsky sobre a aquisição da linguagem. Segundo Chomsky – e trata-se de uma teoria hoje sem contestação séria – as crianças não adquirem a linguagem por imitação: as crianças dispõem desde o nascimento da faculdade inata de adquirir a linguagem. Os recém-nascidos sabem gramática ! (sobre esta questão, pode ver-se, João Costa, e outro, "Falar como os bebés, Caminho, Lisboa).

IX. O utilitarismo de Jeremy Bentham como precursor do Totalitarismo moderno.

Jeremy Bentham (1748-1832) é um representante paradigmático da Filosofia das Luzes e do seu projecto totalitário dirigido à "modernização" do material humano para a sua incondicional submissão aos imperativos da sociedade capitalista moderna.

O princípio básico da sua filosofia, exposto na sua obra de 1780 "Introduction to the Principles of Morals and Legislation", publicado em 1789, consiste em definir o bem moral de acordo com a maior utilidade que resulte da acção em causa. Uma acção moral é aquela que maximiza a utilidade para todos. Bentham recusou os direitos humanos, por os considerar infundamentados. Tudo se deveria reduzir a uma contabilidade de utilidades e não em deveres ou direitos inerentes à pessoa humana. Um raciocínio típico do utilitarismo será este: uma pessoa (A) pretende matar 20 pessoas inocentes. Mas, em alternativa, propõe a outra pessoa (B) que mate apenas uma, à sua escolha. O raciocínio utilitarista é claro. Se B aceitar matar uma pessoa, o ganho será de 19 e o prejuízo de 1. Se B não aceitar matar uma pessoa, o ganho será zero e o prejuízo será de 20. Logo, a acção de B matar uma pessoa é moralmente boa; a omissão de B (não matar uma pessoa) é moralmente mais condenável, consideradas as suas consequências.

Este raciocínio demonstra a arrogância filosófica com que se pretende abolir um pensamento fundamentado na dignidade da pessoa humana. É evidente que o raciocínio se desmonta facilmente no plano da Ética: para evitar a acção imoral de A o meio adequado não é cometer uma acção imoral.

Mas onde a visão totalitária de Bentham se revela completamente é nas propostas de "reformador" e nas medidas que propôs para atingir o objectivo de racionalização da sociedade. Entre elas, destaca-se o projecto de um edifício, a utilizar em diversos fins, a que chamou o "panopticon", descrito em cartas que escreveu a um amigo e publicadas em 1791, sob o título sugestivo "The Inspection-House", a casa das inspecções. Neste projecto racionalista, Bentham é um autêntico precursor das prisões de alta segurança e até do "Big Brother" televisivo moderno.

O "panopticon" é um edifício circular, dividido em celas com a profundidade do seu raio, sendo o centro ocupado por um compartimento circular destinado ao vigia. As paredes exteriores são de vidro, por forma a que os residentes possam ser vistos de fora continuamente, como uma cela de um jardim zoológico. Pelo contrário, as janelas do compartimento de vigilância estão protegidas por gelosias, para que os residentes nunca saibam quando estão a ser vigiados. Os residentes não deveriam poder comunicar entre si, tendo Bentham descido ao pormenor de descrever os dispositivos a aplicar às vítmas da sua pedagogia para que não falassem ou não ouvissem. Os residentes do "panopticon" deveriam ser aproveitados para trabalhar, o máximo de horas com o mínimo de intervalos, e ser punidos corporalmente através de uma máquina de espancamento. Neste edifício os indivíduos estão sujeitos ao controlo permanente, e à exposição pública onde se anula a esfera da privacidade pessoal.

O "panopticon", segundo Bentham, seria "utilizável em todas as instituições em que pessoas de qualquer tipo devam ser mantidas sob controlo, especialmente casas de correcção, prisões, oficinas, manufacturas, fábricas, asilos para pobres, hospícios e escolas" (Bentham, The Inspection-House, cit. por Robert Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, p. 83).

Bentham defende, em consonância com os seus princípios racionais, o controlo permanente da identificação dos indivíduos, chegando a defender que cada cidadão britânico devia ser tatuado com um nome ou com um número únicos (segundo uma carta a Sir Carew de 1804, cit. por Robert Kurz, cit. p. 86.).



O objectivo da racionalidade totalitária de Bentham é claro: submeter o material humano aos princípios mecanicistas da rentabilidade postulados pelo sistema económico liberal. No mundo panóptico, o material humano deve ser utilizado racionalmente de acordo com o princípio da máxima rentabilidade. A filosofia de Bentham tem o seu fecho na sua proposta de que os cadáveres fossem utilizados como estátuas nas igrejas e nos teatros e, em consonância, Bentham deixou o seu próprio corpo em testamento para o estudo da anatomia. Depois dessa utilização, alguns discípulos ainda encontraram uma utilidade ao esqueleto: revestido de cera, vestido com as roupas de Bentham, metido num armário móvel "serve" ainda hoje para mostrar um inglês de 1830 (V. R. Kurz, p. 87).

"As intenções desta racionalidade demente podem fixar-se em quatro pontos essenciais. Em primeiro lugar, no princípio da visibilidade total: ‘a visibilidade total é uma armadilha’ (Michel Foucault, [Vigiar e punir]). Todos estão sob vigilância permanente sem saber em que momento estão realmente a ser vigiados. Assim, pode desenvolver-se um comportamento em que é a própria pessoa que se julga vigiada que se controla a si própria (aqui torna-se clara a coincidência entre a normalidade capitalista, que na época de Bentham ainda não estava adquirida, com o comportamento esquizofrénico)

Em segundo lugar, o princípio do isolamento dos indivíduos. Também aqui se aplica: a partir do momento em que o comportamento está auto-induzido, podem ser retiradas as paredes das celas e os separadores sem que os indivíduos deixem de se considerar indivíduos isolados e de se comportar como tal. (...)

Terceiro, o princípio da objectivação externa do comportamento auto-induzido através de aparelhos, formas de organização, arquitecturas, de repartição dos lugares, etc., de forma a que, ‘numa ordem concertada de corpos, superfícies, luzes e olhares’ os imperativos capitalistas se imponham automaticamente ‘num aparelho cujos mecanismos internos produzem a relação em que os indivíduos são prisioneiros’ (Foucault, cit. 259).

Por fim, em quarto lugar, o princípio da despersonalização da força, da dominação, da disciplina, da orientação, etc. não apenas através do plano macro da máquina total da economia de mercado auto-regulativa, mas também no microdomínio da imediatidade quotidiana. A total visibilidade e simplicidade dos mecanismos, que além do mais são completamente públicos, torna pessoas completamente incultas e até estúpidas capazes de exercer o controlo, como Bentham, não sem orgulho, salienta: ‘praticamente qualquer indivíduo pode pôr a máquina em movimento: no lugar do director pode estar também a sua família, o seu hóspede, até o seu criado’ (Focault, loc. cit. 260).

A observação de Lénine de que, no Socialismo de Estado, ‘qualquer cozinheira pode comandar o Estado’ (ou, pelo menos, deve ser esse o objectivo) adquire, à luz da perspectiva panóptica, um sentido revelador. Torna-se de repente visível que aqui não está em jogo a emancipação da cozinheira (...), mas uma tal autonomização consequente da máquina social do trabalho e da valorização relativamente aos indivíduos que é indiferente que seja uma cozinheira ou um especialista quem exerce as funções de controlo" (Robert Kurz, Schwarzbuch Kapitalismus, pp 88-89)

A ética da "maior felicidade do maior número" não é mais do que a contabilidade aplicada aos indivíduos atomizados e "despersonalizados" que se destinam a servir a máquina auto-regulada do mercado, igualmente ajustável à economia de planeamento central do Socialismo de Estado. Daí que a Ética Prática de Singer conduza, nas suas consequências finais, à desqualificação do "material humano" ("animal humano" diz Singer) e à sua fungibilidade com todos os seres vivos, que, cinicamente, Singer diz querer elevar ao nível de titulares de direitos. Anuladas todas as diferenças, consumada a despersonalização, a máquina auto-regulada do dinheiro pode funcionar sem qualquer entrave e o "material humano" supérfluo (as crianças famintas do Terceiro ou do Primeiro Mundo, os adultos não utilizáveis na máquina da valorização em retracção) pode já ser colocado numa escala sub-humana. A Ética Prática consuma assim os traços demenciais do Capitalismo totalitário, abrindo sem pejo as portas a uma lógica de extermínio.

"Como um cão" disse Joseph K., o personagem de "O Processo" de Kafka, no momento da execução com um tiro na nuca. Na lógica da Ética Prática: menos ainda que um cão.

Bibliografia:

Blumentritt, Martin, "Von Singer zu Hitler", www.comlink.de/cl-hh/m.blumentritt/index.htm

Costa, João, e Santos, Ana Lúcia, Falar como os bebés, Caminho, Lisboa.

Heinsohn, Kathrin, Nationalsozialistische Ideologie heute? Das Thema Peter Singer, www.tu.bs.de/institute/didaktikbio/maps/ Projekt.

Kurz, Robert, Schwarzbuch kapitalismus, Eichborn, Frankfurt-am-Main, 1999.

Lenz, Werner, Niemand ist ungebildet, http//werner Lenz, Universität Graz

Lévinas, Emmanuel., Humanismo do outro Homem, Vozes, Petrópolis, 1983.

Löwith, Karl, Natur und Humanität des Menschen, in Der Menschen inmitten der Geschichte, Philosophische Bilanz des 20. Jahrhundets, Metzler, Stuttgart, 1990.

Lisboa, Setembro de 2003