A TORMENTA ARGENTINA NA CRISE GLOBAL DO CAPITALISMO

A TORMENTA ARGENTINA NA CRISE GLOBAL DO CAPITALISMO

José L. Felix

No editorial do PÚBLICO de 23 de Dezembro passado, José Manuel Fernandes espraia-se em chochos argumentos e advertências envenenadas, a pretexto do vendaval que atravessa o país das pampas. Começa por referir que "Buenos Aires é uma cidade maravilhosa – mas que está a saque", omitindo, como é de esperar em semelhante plumitivo, o saque prévio a que procederam as "prestimosas instituições financeiras internacionais" , que coligidas com as suas homólogas argentinas, pilharam o que puderam, reduzindo a esmagadora maioria da população ao estado de indigência em que se encontra.

Tudo desabou, continua ele, a economia, os salários, as pensões, agora também o Governo e "esse homem bom" (sic), "que dá pelo nome de Fernando de la Rua". O equivoco domina os juízos, como é de uso nos meios de comunicação de massas. Na dúvida sobre o que o Sr. Fernandes entende por "economia" opto pela regra geralmente aceite. Por "economia" o editorialista estará a referir-se à sociedade do dinheiro e do mercado que, segundo os seus discípulos , distribuiria a riqueza por todos, conforme a falida e rançosa "mão invisível" do velho Adam Smith. Os diligentes obreiros ideológicos desta sociedade não são avaros no uso destas expressões, embusteiras, mas de belo efeito.

Quanto ao "homem bom", José Manuel Fernandes, terá, na certa, óptimo material informativo sobre a sua bondade, quiçá caridade, cujo recurso neste contexto é, no mínimo, burlesco. Também é verdade que, nestes jogos de prestidigitação, a que os pretensos "fazedores de opinião", das supostas elites, se dedicam, já nada surpreende. O horroroso da questão (J. M. Fernandes dixit), é que "desapareceu o orgulho nacional, estalou a revolta, o futuro, mesmo o mais imediato, tornou-se imprevisível". E, horror dos horrores, "já ardem bandeiras azuis e brancas no centro de uma das mais belas avenidas do mundo". Enfim, a pátria está em perigo, isto é, os mal-agradecidos argentinos berram protestos e exigem comida em vez de cantarem o hino nacional. Chegam ao desplante de queimar o símbolo máximo da pátria pelo qual, segundo "os Senhores directores", se deve sacrificar a vida, nem que seja morrendo de inanição, para que alguns se refastelem na abundância e o arcaico sistema social da hierarquia e do assalariado se mantenha. Nisto de pátrias há aqueles que se sacrificam por elas, os patriotas/idiotas e os que se governam à sua custa, os patriotas/prédiotas, ou proprietários.

O senhor José Manuel sentiu-se horrorizado com o sucedido "numa das mais belas avenidas do mundo", e não em qualquer aldeia de cubatas do terceiro mundo, o que, na sua óptica, seria, certamente, aceitável. E a que horrores se refere este tão sensível personagem? Às dezenas de mortos e feridos pela polícia por tentarem apoderar-se dos bens necessários às suas vidas, que o governo de la Rua e de outros "homens Bons" lhes sonegaram? Às vítimas da repressão das gloriosas forças armadas, tão lestas em massacrar o inimigo interno, como em anos recentes voltaram a demostrar, durante a ditadura de 1976 a 1983, em que torturaram milhares de pessoas e assassinaram pelo menos 30.000, com o mesmo zelo saguinário que já tinham manifestado em épocas anteriores? Não, toda a sua indignação tem a ver com a queima do trapo patriótico, perante o qual todos somos iguais, ricos pobres e mortos de fome. Só que há uns que são mais iguais do que outros, ou será que o que existe na Argentina é de todos os argentinos? Mas o Sr. José Manuel Fernandes, na certa um "homem bom", não se fica por aqui, propõe-se tirar ilações dos trágicos acontecimentos. E quais são elas? Nada mais nada menos do que atribuir as responsabilidades da crise capitalista em curso e a rotura financeira daquele país sul americano, ao povo. Sim, é ele o grande culpado de tudo o que se passa. Porquê? Porque esses malandros consomem de mais!!!

Depois de passar como cão por vinha vindimada ao que, de modo afectado classifica com "explicações mais clássicas", ou seja, "a endémica corrupção dos políticos e a falta de responsabilidade das autoridades financeiras internacionais" (sic), e de aludir, com a mesma supersónica velocidade, aquilo que chama "outras explicações mais políticas", que constituem, segundo o seu bestunto "a teimosia no prosseguimento da política de paridade entre o peso e o dólar", conclui com a mesma urgência, não vá o leitor ater-se a alguma explicação clássica, "mas é bom não culpar os políticos de turno, os homens do FMI ou o ministro das finanças". Finalmente uma observação acertada, embora, como se impõe, para extrair conclusões de uma desfaçatez sem limites.

É verdade que a atribuição de culpas, de bodes expiatórios, peça básica da civilização judaico-cristã, não nos diz absolutamente nada sobre as causas dos fenómenos sociais, políticos, económicos, ou de outra ordem, se bem que haja diversos graus de responsabilidade na situação argentina, que não podem ser alijados com abstracções.

O que o director daquele quotidiano da burguesia liberal desconhece, ou finge ignorar, é que o capitalismo sofre de uma grave crise estrutural de acumulação de capital. Na fase actual do capitalismo os postos de trabalho cridos pela hipotética nova economia (já pouco reclamada, como a igualmente desacreditada economia popular), nem de longe compensam aqueles que são perdidos pela introdução de novas tecnologias, substitutas do trabalho, não coadjuvantes da actividade humana, mas sim suportes do reino do lucro, ou seja, daquilo que comanda este admirável mundo novo. E será bom não esquecer que não existe capitalismo (nem produção, nem emprego), sem lucro. Para atenuar estes efeitos depressivas, o capital internacionalizou-se mais do que nunca, forçou os Estados a efectuar a derrogação dos condicionantes regulamentos de toda a ordem, aproveitou-se das gigantescas capacidades que as novas tecnologias lhes proporcionaram, mundializou a produção, segundo os seus critérios de custo/beneficio, transfere e procura investir somas colossais de capital de forma instantânea para qualquer parte do globo e aí ele está, forjando grande parte dos seus lucros na especulação financeira, por via da taxa de lucro mais apetecível do que a maioria dos sectores produtivos.

É isto a globalização económica, um capital único, sem rosto e sem fronteiras, actuando a nível mundial, subordinando, em absoluto, aos seus interesses os estados e as organizações internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, instituições cujos votos são estatutariamente proporcionais ao peso de cada plutocracia segundo o princípio "mais dólares, mais votos", sem que o distinto democrata e os seus congéneres jamais se tenham sentido indignados com a ausência de democracia nestas instituições, nem tão pouco, diga-se, nas empresas, onde o quotidiano dos trabalhadores está subordinado às estratégias de obtenção do lucro. Neste processo de globalização mundial, as políticas económicas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, procuram abrir as economias nacionais dos países eternamente "em vias de desenvolvimento" ao investimento estrangeiro e à especulação.

É nesta perspectiva que é formado o chamado Programa de Adaptação Estrutural do FMI e do Banco Mundial, que determina as condições em que são concedidos empréstimos a esses países, e que incluem a desregulamentação, a liberalização e a privatização da economia. Estas medidas agravam as condições de vida das populações locais e incidem sobre o desmantelamento da segurança social e ambiental e cortes nas despesas públicas, com a redução do investimento na educação e na saúde. Assim o país torna-se "atractivo" para os investidores estrangeiros muito disputados pelas oligarquias nacionais, que ainda lhes concedem isenções fiscais e subsídios de toda a ordem. Veja-se a propósito, o que acontece neste domínio em Portugal.

Seria a partir de semelhante realidade que o Sr. José Manuel deveria fundamentar o seu editorial, se o pretendesse sério. Coerentemente com os interesses que defende omitiu-a, como, naturalmente, omite que, hoje em dia, 40.000 empresas da oligarquia financeira mundial, controlam 80% do comércio mundial. Ou que os activos das 200 pessoas mais ricas do planeta são superiores aos de 41% da população mundial. Ou ainda, que mais de 250 milhões de crianças têm de trabalhar nas mais inumanas condições, para poderem sobreviver e que 17 milhões de crianças morrem anualmente de doenças facilmente curáveis. Mas o dinheiro comanda a vida e há que obdecer aos seus interesses para que, sobre os escombros e a miséria, a sociedade da ganância possa subsistir.

A concentração de dinheiro e de poder nas mãos de uns poucos acentua-se cada vez mais, com quatro quintos da humanidade a sobreviverem penosamente. Que interessa isto ao director do PÚBLICO e outras aves emplumadas da (in)comunicação social, entretidos em artes de prestidigitação e pretensas análises políticas, para satisfação daqueles que lhes prodigalizam a abundante ração com que anestesiam as suas consciências?

Quando em Dezembro de 1999 Fernando de la Rua sucedeu ao anterior representante do capital, o escroque Menem, fê-lo como político que é, prometendo este mundo e o outro (já Kroptkin dizia que os políticos são iguais em todo o lado. Prometem construir pontes até mesmo onde não existe rio).

Apesar de todas as promessas do "homem bom", a realidade da economia global, impondo os seus interesses a todos e subordinando os mais débeis da hierarquia do sistema, está muito para lá dos discursos delicodoces ou tonitruantes dos simuladores da política, simples clowns de um espectáculo destinado a desviar as atenções do essencial, ou seja, das imposições de uma máquina de fazer dinheiro, que não dominam. O sistema capitalista, baseado no investimento permanente para obter sempre mais lucros, coloca todo o ser humano, mesmo os políticos, os próprios detentores de capital e os seus gestores, ao serviço do seu objectivo supremo – obtenção de lucros. Se não os obtém ou não os possibilitam, saem de cena e entra outro actor. Isto serve para a Argentina, para Portugal e para qualquer outro país. O dinheiro é um só, sem fronteiras, cor, religião, ética, ou outros valores que não sejam de colocar tudo e todos ao seu serviço. Num quotidiano infrene dia e noite, durante todas as suas 24 horas, ao longo de todo o ano, milhares de milhões de dólares circulam pelo mundo em busca de lucros. O papel decisivo desta engrenagem é desempenhado pelos Estados Unidos, na qualidade de última potência mundial, protectora do capitalismo da crise global e possuidor do dólar como moeda de todo planeta.

Bem ao contrário do que cinicamente defende o comentador, a responsabilidade imediata da crise argentina não é devida ao excesso de consumo mantido de acordo com a realidade social e histórica da população. Já agora não nos esqueçamos das ainda recentes crises da Turquia, México, Brasil, Rússia e dos alcunhados tigres asiáticos, agora simples gatinhos desdentados do capital, tal como as restantes regiões do globo varridas pela competição desenfreada a nível global, que não mais miaram coisa que se visse, esganados pela dívida externa. O mesmo se passa com os EUA, autêntico buraco negro da economia mundial, que suga o dinheiro de todo o planeta, que se atafulha nas suas Bolsas, mas esses têm a força da moeda universal e, sobretudo, a força das armas.

O director do PÚBLICO "esqueceu-se" de referir que aquilo que já foi designado por dependência agravou-se de forma intolerável com o desenvolvimento da economia global. Na Argentina, como por todo o lado, as tentativas de satisfazer a procura nacional através da produção interna foram aniquiladas por via da competitividade do mercado mundial. O que restou, como protecção face à concorrência global, foi o intrumento da taxa cambial. Vários países da Ásia e da Europa Oriental utilizaram a subvalorização da moeda para manterem alguma competitividade e conseguirem exportar as suas mercadorias. O preço a pagar por esta estratégia foi bem elevado. Tudo o que era importado tornou-se mais caro, baixando ainda mais o nível de vida do conjunto da população, e levou à liquidação de vastas áreas industriais e de infraestruturas.

Perante este panorama a Argentina, tal como o México e o Brasil, este com o plano Real, adoptou uma estratégia oposta. Com a supervisão e conivência do FMI e de outras instituições financeiras, o Governo supervalorizou artificialmente a moeda nacional, o peso, equivalendo-o ao dólar, para atrair capital especulativo para o país. Pretendeu-se deste modo "martelar" os balanços monetários e reciclar a dívida externa.

Este cosmética estatística tem custos terríveis para a população, como se acaba de confirmar. Elevou de forma extraordinária o custo de vida, que atingiu níveis trágicos e, face aos juros elevados e às importações extremamente baratas, arrastou a maior parte dos sectores económicos para a bancarrota. Muito ao contrário do que o senhor Director pretende, as supostas benesses da economia global não conduzem à melhoria das condições de vida dos povos. Passa-se, claramente, o oposto. Há cada vez um maior número de regiões, espalhadas por todo o globo, que são quase por completo excluidas do ciclo económico capitalista. Não dão o lucro pretendido, logo, regiões e povos inteiros, são colocados em "pousio". É o que se passa na África ao sul do Saara, em grande parte da Ásia e da América Latina, e no antigo Bloco do Leste, em especial na ex-URSS. Uma vez organizado de forma transfronteiriça, em moldes que pouco ou nada têm a ver com o antigo Estado Nação, o capital mundial concentra-se nas poucas áreas rentáveis ainda existentes, na Europa Ocidental, EUA, alguns pontos do Sueste Asiático e pouco mais. O restante planeta, que representa quatro quintos da humanidade é dispensável ao movimento autónomo do dinheiro. Basta-lhe assegurar o controlo das mérias primas cada vez mais desvalorizadas, muito em especial manter as importações do petróleo, e não permitir que os pobres se revoltem contra o império. Melhor ainda, conseguir que essas populações se matem entre elas, para assegurar o controlo de vastas regiões e manter em pleno funcionamento um dos poucos sectores ainda altamente lucrativos, a indústria do armamento. Em caso de necessidade utiliza-se o pior dos terrores (a guerra) para combater reais ou supostos terrorismos.

A Argentina é apenas a mais recente vítima deste admirável mundo novo, cujo fenómeno de pauperização absoluta se faz sentir também entre cada vez maiores camadas populacionais das próprias metrópoles. A novidade argentina, que levou os comentadores encartados a debruçarem-se sobre o assunto, reside no facto destas manifestações de desespero por parte de uma população que quase subitamente se vê na condição de indigente, se darem entre gentes "brancas e educadas", uma quase Europa, no hemisfério Sul, ou como confessa o conspícuo articulista "um país que, ainda há algumas décadas, era um dos países mais ricos e prósperos do mundo, excepção à regra de que o Sul está condenado à pobreza". Para este tartufo da caneta tudo vale para justificar o injustificável sistema da autonomia do dinheiro, até mesmo um discriminatório fatalismo geográfico. Interessa é escapar a uma análise social, que se poderia revelar perigosa para a segurança do atoleiro que nos sufoca. Se as calamidades famélicas e os processos bélicos de autodestruição acontecerem entre gentes pobres, terceiro mundistas, de pele escura, habitantes de estepes geladas ou de idioma esquisito, não merecem muitas linhas. A menos que pela sua dimensão e extrema gravidade, o acontecimento possa merecer a atenção, devido ao seu carácter exótico e aterrorizante (não há nada que se compare à nossa terra…), e isto apenas enquanto não surge outra "distracção". Mas agora, vejam só, tudo isto aconteceu naquele esplêndido país, a Argentina. Será que a miséria em massa se aproxima das nossas portas? Não, tranquiliza-nos o Sr. José Manuel, aconteceu ali, na terra das Pampas, por um motivo. Os argentinos, esses perdulários, consomem de mais. Não acreditam? O senhor director "explica-nos". "É bom recordar que, desde há muito, a Argentina vive governada ora por militares, ora por populistas. E que se habituou a gastar de mais", sentencia ele, e acescenta ainda numa oca e fantasmagórica análise, que nasceu e vive ali um estranho fenómeno político, o peronismo, uma "mistura de sindicalismo de esquerda e autoritarismo de direita", ou não será o contrário? É indiferente, o que é preciso é dizer qualquer coisa, sem analisar seja o que for.

Segundo o autor, temos então que aquela gentinha beneficia de um consumo exagerado, gastando, sem rei nem roque, sem ter em conta a gravidade das contas nacionais. Depois de acusarem o povo de não querer trabalhar, os interesseiros da escrita e todos os ideólogos de serviço, face à inexistência, cada dia mais evidente, de oferta de emprego, que tornou essa catilinária absurda, descobriram novo lema, o povo consome de mais! Mudam-se os tempos, mudam-se os discursos, mas a essência é sempre a mesma, instilar o princípio da autoridade em cada um para que a exploração se mantenha.

Nem Hitler ou Estaline desdenhariam desta prosápia.Ou talvez que o antigo "democata popular" José Manuel tenha descoberto esta (des)orientação nalgum canhenho do seu primitivo ídolo Mao Tsé Tung, o grande burocrata defensor do capital nacional estatizado. O que este senhor e os seus confrades se recusam a admitir é a existência de uma crise estrutural de acumulação do capital, que envolvem numa nebulosa e metafísica conjuntura, cuja origem e contornos jamais se atrevem a encarar à luz do sol. Há mais de 20 anos que grande parte das economias da América Latina entraram em colapso. Foi na época em que se iniciou a miséria africana e começaram, na América Latina, incluindo naturalmente a Argentina, a hiperinflação e a desindustrialização. Por altura do final dos anos 80 começou a falar-se da década perdida, agora nem isso se diz, procura esconder-se a realidade e utilizar os chavões costumeiros.

Foi o que aconteceu, poucos dias depois deste editorial, quando o afilhado do antigo ditador Marcelo Caetano, o "one man show" Prof. Marcelo, num dos seus venenosos comentários políticos na TV, quando instado a dar o seu parecer sobre estes acontecimentos, sentenciou, depois de uns quantos rotineiros lamentos, que se trata de uma situação "muito complexa" e os EUA não deviam abandonar aquele país, deveríam injectar milhões de dólares, como fizeram no México, que, graças a essa "injecção" se encontra hoje normalizado. O expedito e manhoso ex-criador de factos políticos, diz despudoradamente essas barbaridades, na certa não por ignorância mas por espírito de confraria, é preciso defender o osso. Não referiu o dito Marcelo que a situação é hoje bem mais grave do que aquando da rotura financeira mexicana. Até os EUA têm de ser cuidadosos nos gastos, sobretudo se a sua utilidade e rentabilidade são duvidosas, como é, manifestamente, o caso. Na realidade, o reino mundial do dinheiro através do FMI, o seu braço operacional, já decidiu, em conformidade com a sagrada lei do lucro e da segurança do capital, deixar a Argentina sangrar, o povo que pague a crise, já que o capital não pode nem deseja fazê-lo. É de tal forma evidente esta estratégia que os empréstimos àquele país passarão a ser garantidos através dos activos imobiliários do Estado. A moeda foi lançada na lixeira e com ela o destino de milhões de pessoas possuídas e formatadas pelo império da mercadoria e do seu fetiche supremo, o dinheiro, sem o qual todos admitem ser impossível viver, quando o inverso é que é verdadeiro – é a ditadura da mercadoria e do seu máximo representante, o deificado dinheiro, que constitui o abstáculo fundamental a uma vida digna de ser vivida.

Convirá ainda lembrar ao Prof. Marcelo, e a todos os marcelinhos que por aí pululam, que a "normalização" do México, abençoada pelas prestimosas instituições financeiras internacionais, com o FMI à cabeça, custou à população pobre daquele país, que constitui a esmagadora maioria dos seus habitantes, a descida aos infernos da miséria mais degradante. Por exemplo, a alimentação "normal" de cada mexicano é, hoje em dia, constituida apenas por uma refeição de tortilha ao dia. Esta miserável "normalidade" é mantida graças a uma odiosa repressão, em que é recusado o papel às publicações alternativas, as comunidades indígenas vêm os seus direitos esmagados e muitos milhares de fábricas, particularmente norte-americanas, utilizam a mão de obra barata do lado mexicano da fronteira, totalmente franqueada aos gringos, mas impossível de atravessar pelos mexicanos e outros latinos, graças ao novo "muro da vergonha" que por ali se estendeu ao longo de milhares de quilómetros. Tal como o Prof. Marcelo, também o governo norte-americano considera a situação do México "normalizada". Talvez por isso o Estado norte-americano decidiu incluir na sua lista kafkiana de movimentos terroristas, o Movimento Zapatista, que, inspirada na revolução zapatista de cariz libertário do princípio do século XX, com o seu grito "Terra e Liberdade", levantou, em finais do mesmo século, as populações de Chiapas, retomando a memória de Zapata e Ricardo Flores Mongón, numa revolução, naturalmente contraditória, mas que recusa a tomada do poder e luta pela dignidade dos povos indígenas e de todos os pobres. Tudo isso tem de constituir, necessariamente, para o Governo americano um ideal terrorista, as riquezas naturais de Chiapas e o mau exemplo dos zapatistas tudo justificam. Ainda mais se entre essas riquezas, se encontra, a par de excepcionais condições para a prática de culturas agrícolas industriais, o ambicionado petróleo. Não podem deixar de ser "terroristas" os indígenas que, quando convidados a vender os seus territórios, respondem: "não queremos o dinheiro dos brancos, nós comemos o que a terra dá, comam vocês o dinheiro". Na realidade, a actual fase do capitalismo, de crise global, já não se baseia nas economias nacionais. As cadeias de produção de valor das empresas transnacionais não se coadunam com os estritos limites do Estado Nação. Estas empresas globais que dominam todos os sectores da economia, constituem-se num capital global, que submete as instituições estatais e transnacionais à sua lógica. Esse capital e a sua necessidade de acumulação, necessitam, ainda assim do Estado, particularmente no que diz respeito à força armada e produção de dinheiro, se bem que o controlo sobre os processos monetários já tenha passado a ser exercido por elas. É um Estado completamente subordinado aos interesses da economia e do lucro aquele que emerge desta realidade.

Muito ao contrário do que o Sr. José Manuel Fernandes opina a situação na Argentina não é fruto de um consumo desenfreado. Além da "autorização" para a política monetária e financeira, que os governos desse como dos restantes países, necessitam por parte do polícia monetário que constitui o FMI, e que naturalmente os governantes argentinos obtiveram previamente, valeria a pena analisar quem foram os grandes beneficiários com as importações, decerto não foram os pobres. Mas a derrocada financeira também não provém de uma ditadura dos sindicatos e dos militares, sustentáculo do fascismo peculiar que constituiu o peronismo. Esse movimento está hoje completamente ultrapassado, sobrevivendo através da ideologia de alguns nostálgicos e da função controladora dos trabalhadores, como a exercem todos os sindicatos "democráticos e responsáveis", interlocutores necessários do capital e dos seus representantes.

Os poderes absolutamente ditatoriais da América Latina já abandonaram o palco. O espectáculo democrático é aquele que está, desde alguns anos, em cena. Os intelectuais de esquerda podem escrever na imprensa ou ir à Televisão fazer os seus requentados comentários (como o ex-esquerdista José Manuel Fernandes e outros o fazem por cá a nível ainda mais rasteiro) e os cidadãos até têm o direito de votar num presidente de esquerda. Só que para além da tradicional utilização do embuste da democracia representativa, a maioria dos cidadãos são excluídos, reprimidos e mantidos afastados das maravilhas da democracia. Será por isso, por haver uns que são mais cidadão do que outros, que mais de 50% dos eleitores não participaram nas últimas eleições argentinas. A liberdade política é conjugada com a mais odienta repressão policial. Afinal o Ocidente ou o Império do dinheiro, é formado por democracias políticas e não por democracias sociais. Na Argentina, como na restante América Latina, de uma forma ainda mais evidente que noutros lados, o poder político é uma ficção absoluta, os políticos exercem menos poder efectivo do que a polícia ou a banca e outros poderes de facto. Os sindicatos peronistas, perdida a ficção populista-patriótica de outros tempos (já não há capitais "nacionais") e o fervor alimentado com as migalhas que sobravam para os deserdados, fruto de uma conjuntura favorável à produção local, procuram exercer um controlo de carácter mafioso sobre camadas populares. Mas perante a crescente miséria, imposta pela economia liberal, a ideologia enfraquece e o descrédito acompanha-a. O espectáculo político, à falta de elenco qualidade lá como cá em rápida escapatória do proscénio, é agora representado por um actor de terceira linha, um tal Adolfo Rodrigues Saa, tristemente famoso na pátria do tango, não como criador do Bacalhau à Gomes de Sá, mas sim, através da actividade política corrupta e oportunista, o qual começou, como lhe competia, por fazer rios de promessas. Mas, mal tinha dito que iria pedir um adiamento do pagamento aos agiotas do FMI e prometido ao povo que a partir de agora todos os argentinos iriam beneficiar e sofrer juntos por inteiro, já o governo, perante os protestos de uma população defraudada, pedia a demissão. Os argentinos, contrariamente aos votos dos Srs. Fernandes e Marcelo, parece que levaram mais a sério as expressões "paciência" e "sacrifícios", suportados pela realidade dos factos, do que os desacreditados "amanhãs que cantam", prodigalizados pelo Saa.

Por estes dias o Sr. Saa, anunciou o fim da paridade dólar/peso e o lançamento de uma nova moeda, com uma redução da taxa cambial. Quer dizer promete ao povo mais do mesmo. Ameaça com uma desvalorização da moeda, que irá reduzir ainda mais o poder de compra das populações, agravando a sua miséria. Nesta quadratura do círculo não há saída possível. Aquela que os senhores do país irão tentar, se os deixarem será aguentar uma podre paz social, com a grande maioria da população reprimida, intimidada e na miséria, procurando manter alguns benefícios para o capital no seu conjunto, a exemplo do que aconteceu noutros lados, como no México.

Contudo, grande parte da população parece ainda preocupada na infrutífera busca de um "político honesto e competente", como se os graves problemas estruturais que os atormentam fossem passíveis de ser removidos pela simples mudança de pessoas ou cores partidárias. Esse é o objectivo que o Sr. José Manuel e todos os restantes doutos comentadores da impropriamente designada comunicação social perseguem. Procuram manter-nos viciados nas guerras intestinas dos partidários da oligarquia política, actores secundários no domínio do homem pela hierarquia e pelo dinheiro. Só a associação livre dos indivíduos, federativa e sem fronteiras, poderá encontrar saída para o caos de toda a ordem em que a sede de lucro e o domínio de uns homens sobre os outros homens lançou a humanidade.

Jamais a liberdade e a dignidade de um povo pode ser obtida através de "dádivas", cuja função é impedir a autonomia dos povos. É esse o caso presente, quando o actual político de serviço promete oferecer rações alimentares ao povo em dificuldades. Este caso é exemplar, um país dotado de condições pletóricas de produção alimentar, o antigo celeiro da Europa, reduziu o seu povo à condição de indigente alimentar, por via da escravização ao império do lucro. O capitalismo na sua face actual torna ainda mais nítida a gigantesca contradição que cria entre a satisfação das necessidades das pessoas e a necessidade de lucro que comanda a incensada economia. Apetece dizer que, se o calor solar fosse comercializável, os povos dos trópicos, pobres quase todos, morreriam de frio.

Se o povo argentino conseguir libertar-se da dependência em que, desde há muito, se encontra, recusar a esmola das rações alimentares que os governantes do seu país lhe prometem e vier a ocupar as empresas, as fábricas, os campos e todas as actividades, decidindo livremente o que produzir e como produzir, para satisfação das suas necessidades, encontrará uma porta de entrada para ultrapassar a lamentável situação a que se deixou conduzir. Só as populações, elas próprias sem intermediários ou salvadores, podem alterar os percursos trágicos em que se encontram mergulhados. Nenhum político, comentador ou qualquer ideologia pode comandar as populações, só elas, da melhor forma que encontrem, podem ser as senhoras dos seus próprios destinos.

O articulista entra por fim no cerne da sua dissertação. Através de um paleio entre o jesuítico e o leninista tenta, com a elegância de um paquiderme, estabelecer uma relação entre o cunhalismo e o salazarismo... Não que estas defuntas ideologias lhe façam cócegas, apenas para apresentar o lastimável corolário do seu arrazoado. Como uma espécie de ponto prévio começa por esclarecer-nos que "o cunhalismo e o salazarismo são apenas faces diferentes de uma mesma moeda, e essa moeda é a que ainda representa o lado mais obscuro e persistente do mal (?) português". É isto que se chama bater em mortos, o salazarismo e o cunhalismo estão enterrados e putrefactos, sem perigo de reviverem. O que, de facto constitui as duas faces da mesma moeda é o capitalismo privado ocidental, o capitalismo tout court que se revê na "economia ocidental" e o capitalismo estatal que atingiu o seu apogeu na "União Soviética", bem como o capitalismo híbrido, com mais ou menos componentes de uma das faces da moeda do capital. Qualquer que seja a sua apresentação e maquilhagem, mais Estado ou mais privado, com cores esbatidas ou brejeiras, esta moeda tem em comum o essencial, a autoridade e a exploração, que fundamentam o reino da mercadoria, incluindo o dinheiro, o salariato e a hierarquia sobre todas as formas, nelas compreendidas o Estado e o domínio sobre o indivíduo.

Sem nos esclarecer sobre o tal "mal português", José Manuel Fernandes, deixa-nos então um solene aviso "o horror ao risco e à competitividade, o apreço pela estabilidade tranquila da pobreza feliz, essa velha cultura que ainda impregna a máquina do Estado e bloqueia todo a vontade de mudar e de fazer rupturas...". Aqui é que está o busílis, com esta mentalidade gastadora, este horror ao risco, Portugal, protegido pelo ninho estatal e pelos dinheiros da União Europeia, gasta mais do que pode pagar. Temos de pôr os olhos na Argentina. Do alto da sua Madrassa o Mulá Fernandes chama as massas ignorantes à oração do deus dinheiro.

A ignorância e a desfaçatez, própria dos cristãos novos do império do mercado, atingem aqui as raias da imbecilidade. Começa pela costumeira utilização da abstracção "Portugal". Será o idioma, ou aqueles que habitam este território, ou o Estado, ou a selecção de futebol, os usos e os costumes, a cerveja Sagres, ou tudo isto junto ou, mais prosaicamente, o mercado nacional português? Mas será que tudo o que está em Portugal é de todos os portugueses? Depois vem o choradinho, a falta de capacidade na utilização dos recursos pátrios, a cultura obsoleta e as mentalidades ignaras que não permitem o desenvolvimento do "nosso querido Portugal". Como tudo seria uma maravilha, não fosse esse pequeno pormenor, o povo. Todo este discurso, próprio da burguesia liberal ávida de gerir o "desenvolvimento" da pátria, já está feito, há mais de um século, de uma forma muito mais coerente, séria e inteligente, entre outros por Eça de Queiroz e os seus amigos dos "Vencidos da Vida". Mas a utilização deste paleio anacrónico, nos dias de hoje, é revelador da luta desesperada pelo "salve-se quem puder" que impera nas mentes destes arautos das maravilhas do sistema da mercadoria. Estes figurões substituíram o velho ditado "vão-se os anéis, fiquem os dedos", por outro mais de acordo com a situação presente, "vão-se os dedos fiquem os anéis".

A miopia interesseira impede o Sr. José Manuel Fernandes e todos os Josés Maneis da sua confraria de constatarem que a chamada economia nacional se tornou ilusória na era da globalização económica. As economias, ditas nacionais, apenas se definem, pelo seu grau de participação no sistema mundial de produção de mercadorias. Por sua vez os Estados estão atrelados às necessidades que a especulação financeira lhes impõem.

Os Estados mais débeis do sistema capitalista mundial, muitas vezes já não conseguem custear os encargos com a força armada e nem sequer manter a sua própria moeda nacional. Veremos o que se irá passar na Argentina.

A Nação, tão reclamada pelos Maneis do nosso descontentamento, não passa, afinal, de uma criação histórica do século XVIII, que correspondeu aos interesses do sistema da mercadoria, então em ascensão. Hoje quando as grandes corporações multinacionais que dominam a economia mundial, utilizam uma estratégia global, os Estados nacionais, como os Maneis ainda os vêem, tornaram-se anacrónicos e, em grande parte, dispensáveis. O Sr. Director recusa- se a admitir que as gigantescas forças produtivas criadas com base na actual revolução industrial, da microelectrónica, são, na actual organização social, geradoras de desemprego em massa, e em esgotamento da eficiência. É esta a base sobre a qual se desenvolvem as actuais crises e colapsos financeiros.

Na qualidade de analista político o Sr. Director não pode conceber outro modelo de organização social, que não seja o actual. Nem pode admitir uma forma de vida em que a força de trabalho não se ponha à completa disposição dos lucros, nem que deixe de mendigar uma parcela de trabalho tal como considera natural que o ser humano tenha de ser "governado".

O "mundo livre", afinal o "mundo total" do dinheiro, espalha-se por todos os lugares e actividades. Em qualquer lugar do planeta tudo e todos se tornaram servos da necessidade de acumulação do sistema da mercadoria. É preciso investir sempre, retirar lucros, sempre, e reinvesti-los, sempre. O problema é que a maioria das actividades já não produzem o lucro ansiado. Tal como o tubarão, que quando impedido de se mover não consegue respirar, entra em convulsões e morre, o capitalismo tem, hoje em dia, cada vez mais dificuldades em obter mais lucros, que alimentem a avidez do seu organismo. Por isso todas as capacidades produtivas, todas as infra-estruturas, todos os seres humanos, que não são geradores de mais lucros, são votados ao abandono.

É este "mundo total", esta abstracção do dinheiro e o seu auto-movimento, que se vê atacado por crises por todo o lado. E, pese embora todas as panaceias utilizadas, o problema básico da sociedade produtora de mercadorias, em que o lucro comanda a vida, mantém-se e agrava-se.

Apesar da guerra que a "santa aliança" do dinheiro, sob a hegemonia do Estado mais poderoso do planeta, os EUA, prometem fazer para manter tudo na mesma, apesar das ingerências do FMI e Banco Mundial, os braços financeiro e económico do império da mercadoria e da ONU, o seu homólogo na área política, a situação económica e social do globo escapa aos seus mais loucos atrevimentos. Está muito para lá do reino das intenções e da ideologia.

Por mais esconjuros que façam os políticos, os senhores do dinheiro, e os seus epígonos, não conseguem satisfazer as necessidades básicas das populações. Pelo contrário, agravam-nas. Por entre as ruínas das habitações, fábricas, escritórios, e campos abandonados, percorridos por multidões de novos párias, os chamados "ilegais", em busca de paz e alimentos, floresce uma cultura do hedonismo, onde uma minoria, mantida com futilidades consumistas (se tiver emprego e salário para isso), é forçada a consumir até à insensatez na tresloucada tentativa de compensar o consumo a roçar o zero de quatro quintos da humanidade.

Isto tudo, enquanto as capacidades produtivas atingem níveis indescritíveis, e os políticos e analistas nos matraqueiam com as maravilhas de um futuro que nunca chega. Este "maravilhoso mundo único" torna cada vez mais evidentes as desigualdades e misérias do planeta e deixa-nos antever várias imagens de terror, daquilo que poderíamos apelidar guerra civil mundial, que, seguramente, poderá vir a atingir-nos, se em vez de desenvolvermos uma árdua caminhada contra o princípio da autoridade e da exploração, nos deixarmos enredar nas malhas da dependência e do autoritarismo.

É com este engodo que os senhores comentaristas e correlativos nos pretendem engrolar.

Só caminhando para uma sociedade em que todas e todos possam determinar a sua vida, nos seus múltiplos aspectos, livres de mentores e constrangimentos de qualquer espécie, poderemos, verdadeiramente, transformar as nossas existências em algo que mereça ser saboreado.

Lisboa, Janeiro de 2002