O OCASO DA JUVENTUDE DOURADA DA GLOBALIZAÇÃO

O OCASO DA JUVENTUDE DOURADA DA GLOBALIZAÇÃO

Retração econômica destrói ilusões da "classe global" dos anos 90, ligada à internet, propaganda e turismo, e joga por terra produção ideológica da esquerda deslumbrada

Robert Kurz

Por muito tempo as declarações opostas dos intelectuais sobre o caráter da globalização pareciam manter a balança em equilíbrio: são maiores os riscos ou as chances? Temos de lidar com um limite objetivo do desenvolvimento capitalista ou com uma nova era de acumulação do capital? A pobreza global aumenta ou diminui? Levantava-se teoria contra teoria, análise contra análise, estatística contra estatística, interpretação contra interpretação. Na verdade, todo esse debate foi definido por uma intelligentsia que nos centros ocidentais observava de camarote o processo. O raciocínio era platônico; não estava em jogo a própria pele social. Era o jogo das contas de vidro de uma virtualidade que não devia mostrar seu núcleo social duro. Nos últimos anos isso se alterou por completo. Desde o colapso da nova economia no começo do ano de 2000, as crises sociais vêm se estendendo cada vez mais também pelos países ocidentais. Agora não são atropelados apenas grupos marginais sem grande representação (desempregados por tempo indeterminado, dependentes da assistência social, imigrantes e ilegais, pessoas à procura de asilo, mães solteiras, inválidos, os grupos afetados pela velhice desamparada etc.); também o centro da sociedade é atingida. As rendas da grande maioria diminuem, os sistemas de seguro social se decompõem, os serviços públicos são desmantelados, a assistência médica dos cidadãos normais se encontra ameaçada. A privatização dos riscos assume uma dimensão de encargos financeiros que acaba destruindo o padrão de vida anterior e estrangulando a economia interna.

O sonhos de muitos
Mas, sobretudo, a crise socioeconômica atingiu fundo justamente aquela parcela das sociedades ocidentais que menos esperava por isso, a saber: a pretensa "geração fundadora" do ramo da internet e, no sentido mais amplo, as camadas competentes da chamada sociedade da informação ou do conhecimento, que já foram tratadas como as grandes ganhadoras com a globalização. Ainda há pouco o sociólogo liberal Ralf Dahrendorf falou da "classe global" nesse sentido, a qual lhe parecia ser o novo paradigma da dominação social. Essa "classe", segundo Dahrendorf, começou a "dar o tom", a generalizar seus valores, a fazer de suas inclinações específicas os sonhos de muitos. Sem dúvida alguma, isso é correto. E é preciso até mesmo ampliar o círculo social dessa "classe global". A ela se ligam não apenas a indústria de software e as empresas de prestação de serviços pela internet, como a Amazon etc., mas também as tecnologias "duras" de alguns setores da produção e das prestações de serviços industriais que ascenderam no curso da globalização, como a indústria aeronáutica e as empresas aéreas, para não contar os produtores de hardware. Além disso, há os serviços comerciais como a indústria de turismo e de propaganda, que, embora já tivessem tido sua primeira florescência nos tempos do fordismo, passaram a vivenciar um novo surto na sequência da terceira revolução industrial e da globalização. Não em último lugar, trata-se também da "produção ideológica" no sentido mais amplo, isto é, de um campo de atividades da indústria cultural que se expandiu particularmente nos anos 90. Nesse campo se desenvolveu uma larga camada de novos trabalhadores da mídia, a qual criou o slogan "sociedade do conhecimento", divulgando-o de maneira folhetinesca a fim de celebrar a si mesma. São esses pretensos "campos do futuro", especialmente forçados pelo processo de globalização, que foram arrasados mais violentamente pelo ciclone da crise e transformados em zonas de destroços econômicos. Como se sabe, verificou-se que a magnificência toda se baseava apenas em uma conjuntura determinada pelas bolhas financeiras. Nem todas as Bolsas estouraram, mas já uma parte suficientemente grande para causar o revés violento na economia global, o qual derrubou em primeiro lugar os setores de inovação. As novas tecnologias e as novas mídias não desaparecem naturalmente por causa disso; tampouco a globalização é anulada. Mas é mais do que claro que a terceira revolução industrial e a globalização não podem trazer um nova era de crescimento capitalista. As potências tecnológicas e a socialização planetária do século 21 são completamente incompatíveis com as formas socioeconômicas anteriores da modernidade. O Ocidente e os centros asiáticos vivenciam agora o mesmo processo de dissolução social e de barbárie que já se propagou pelas regiões do Terceiro Mundo, fracassadas com a "modernização recuperadora". A ambivalência das interpretações desapareceu; o assunto é decidido negativamente.

Saguões dos aeroportos
É claro que não se trata meramente de um processo objetivo. A consciência social precisa elaborar de algum modo a crise que irrompe. Isso concerne sobretudo àquelas novas camadas sociais que, segundo Dahrendorf, haviam começado a "dar o tom" em termos culturais e simbólicos e cujos campos agora são soterrados. Com que mentalidade e com que ideologia nós temos de lidar nesse contexto? Dahrendorf ilustra a "classe global" com aquelas conhecidas figuras que "passam muito tempo nos saguões dos aeroportos internacionais", tagarelando sem parar em seus celulares. São pessoas que levaram Tony Blair ao poder e assinam sua doutrina do "new labour". Na Alemanha, a etiqueta se chama "novo centro".
Não é uma classe de grão-mogóis capitalistas, ainda que Bill Gates conste dela; mas tampouco é uma "classe trabalhadora" claramente definida. Poderíamos designá-la como "empresários de seu capital humano", não importando de que forma eles investem em si mesmos. Muitas vezes são prestadores de serviço móveis, do excêntrico da computação aos animadores dos clubes "Meditérranée".
O tipo se encontra em todo o mundo, mas naturalmente, como a globalização, em densidade diferente. Se no Terceiro Mundo é uma camada urbana diminuta, nós encontramos nos países ocidentais uma ampla base de grupos sociais, com um determinado projeto de vida, que se sentiram como parte da "classe global", pelo menos segundo a possibilidade. Também aqueles cuja posição econômica na verdade já era precária desde o início puderam imaginar para si, com o auxílio das redes sociais (ou do suporte familiar dado pelas gerações mais velhas do "milagre econômico", há muito tempo transcorrido), um futuro no "novo centro", participando de certo modo do "capital cultural" (Bourdieu) dos novos setores aparentemente promissores.
Mas é indiferente se se trata dos que ascenderam socialmente na curta era da nova economia ou meramente dos sonhadores ideológicos da "sociedade do conhecimento", dos pequenos empresários da indústria cultural ou dos trabalhadores baratos das mídias: é uma classe de ilusionistas econômicos e políticos. Até mesmo a competência e o profissionalismo ostentados são amiúde meros produtos da simulação.
O culto ideológico pós-moderno da virtualidade tem seus fundamentos tecnológicos nos mundos ilusórios das novas mídias e no espaço de comunicação "desrealizado" da internet. Em termos econômicos, corresponde a isso a arquitetura aérea do capitalismo das bolhas financeiras que hoje chega ao fim; em termos políticos, a encenação de figuras imaginárias preparadas pela mídia e de vocábulos-design conforme o padrão da propaganda comercial. Essa virtualidade determina a consciência da juventude socializada nos anos 90, a qual constitui um segmento substancial da "classe global" difusa. Em geral são pessoas jovens (mais ou menos entre 25 e 40 anos) que definem a imagem do "novo centro".

Grau zero
Por um lado, essa "classe global" jovem não tem passado nem futuro; ela sucumbiu à ausência de história do mercado total. Apesar disso ela é, por outro lado, o produto de uma experiência histórica determinada. Seu grau zero foi o fim do socialismo, o colapso dos movimentos de libertação e dos regimes desenvolvimentistas no Terceiro Mundo, o ocaso do velho paradigma marxista, o emudecimento da crítica social emancipatória e a decadência da reflexão teórica em geral. Em muitos aspectos, pode-se falar de uma "jeunesse dorée", de uma "juventude dourada", leviana, consumista e viciada em diversões. O protótipo dessa designação foi a juventude parisiense contra-revolucionária após a queda dos jacobinos (1794). Foram os filhos de uma minoria rica da grande cidade, como hoje no Terceiro Mundo, separada do grosso de seus contemporâneos. Nos centros ocidentais, ao contrário, é a maioria de uma determinada geração que tem de viver agora seu Waterloo socioeconômico. A "classe global", no sentido mais amplo, é ainda jovem, mas seu futuro já passou. Isso é perceptível não apenas pelos parâmetros econômicos. Muitos não puderam nem sequer assimilar o desastre social em que se dissolveram seus sonhos e suas fantasias. Mas o choque de realidade vai além da experiência de não poder pagar mais o aluguel e de se ver de repente, após as esperanças ambiciosas da nova economia, fazendo bicos deploráveis. Foi também o abalo de 11 de setembro que quebrou o pescoço da pós-modernidade. O simbólico desse ataque terrorista salta aos olhos quando se lê a descrição que Dahrendorf faz da "classe global": "Os que chegaram ao arranha-céu das possibilidades não podem alcançar o topo; hoje em dia o topo está muito longe para a maioria... Mas, enquanto os elevadores só sobem até o décimo andar e outros só começam no 50º, há para todos uma subida. Mas nesse caso se trata daqueles que nem sequer alcançam o andar térreo do edifício das possibilidades". Com um único golpe, a destruição brutal das torres gêmeas e a queimadura do Marco Zero tornou evidente para a "classe global" e seus oportunistas ideológicos que seu "arranha-céu das possibilidades" não é o mundo inteiro e que a "fúria bárbara da destruição" não poupa nem mesmo os centros. O fim das ilusões econômicas é também o fim da "segurança". Para medir como a "jeunesse dorée", agora não mais tão dourada, da pós-modernidade decaída assimila sua própria crise, pode se aduzir como indicador a geração correspondente dos radicais de esquerda. Sem dúvida é uma pequena minoria ideológica, mas que passou, como parte integrante da sociedade, pela mesma socialização e provém do mesmo meio e dos mesmos setores sociais. Justamente porque ela precisa se legitimar no interior dessa relação com a pretensão do pensamento refletido, ela pode servir de sismógrafo para as tendências mais gerais. Essa esquerda virtualizou sua própria radicalidade há muito tempo, conforme o padrão da sociedade circundante. A crítica econômica dura foi substituída em grande parte por um culturalismo brando. Por esse motivo, a minoria de esquerda se encontra tão despreparada diante das catástrofes econômicas e políticas da pós-modernidade em colapso quanto a grande maioria da "classe global". Sob a pressão dos fenômenos reais que não se deixam mais "desrealizar", dissolvem-se os paradigmas de qualquer modo já extenuados de uma crítica social cujos conceitos se tornaram completamente imprestáveis. Na presente crise mundial, o chão social comum das forças sociais concorrentes passa a tremer, as formas categoriais comuns se rompem, o sistema referencial comum choca em seus limites. A ala esquerda da "classe global" e de sua "jeunesse dorée" é completamente incapaz de se colocar esse problema.

Alternativas repugnantes
Uma parte refugia-se em reações regressivas. A reinterpretação culturalista da crítica do capitalismo e do antiimperialismo se aproxima de idéias reacionárias, saturando-se de anti-semitismo e de concepções neonacionalistas. O conceito de "povo", tal como deve ser mobilizado contra as consequências negativas da globalização capitalista, desvela sua qualidade antiemancipatória de estreiteza "étnica".
O espectro da regressão ideológica vai da nostalgia nacional-keynesiana até o projeto folclórico, incluindo a simpatia pelos terroristas suicidas. Uma outra parte da esquerda na "classe global" gostaria de se refugiar atrás dos muros da fronteira imperial a fim de barrar a barbárie lá fora no Terceiro Mundo. De súbito, essa esquerda se torna tão estupidamente pró-americana quanto seus pais eram estupidamente antiamericanos. Invocam irrefletidamente os "valores ocidentais", o "mito de Nova York" e os deleites do consumo de mercadorias. A crítica do capitalismo é abandonada; antes de tudo a máquina militar norte-americana deve criar a "ordem".
Essas alternativas são tão repugnantes que alguns jovens enojados da esquerda da "classe global" decadente quiseram recorrer aos fósseis do marxismo tradicional. Mas o mundo dos proletários das máquinas a vapor está tão distante das condições sociais hodiernas da crise que essa espécie de nostalgia é tomada a sério por muito poucos. A ala esquerda da "jeunesse dorée" pós-moderna declinante mostra em suas reações ignorantes que a "classe global" em seu todo está paralisada. Mas talvez essas pessoas ainda biograficamente jovens, que não podem se desligar da socialização dos anos 90, já sejam na verdade os velhos, e os de esquerda com 30 anos de idade sejam como que "vovôs vermelhos". Nos protestos em massa no mundo todo contra a Guerra do Iraque se manifesta uma nova geração, de pessoas de 15 a 20 anos, para a qual a visão do mundo da geração da nova economia e de sua esquerda é já parte da história. Esperemos que eles venham a compreender melhor que os novos tempos e as novas crises requerem também novas respostas da crítica social emancipadora.

Julho de 2003

Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor de "Os Últimos Combates" (ed. Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.