Prémio da Paz pela desmontagem social?
Robert Kurz
O chanceler Schröder não é pensador nem timoneiro, mas quanto a "golpes" e encenações está aí para as curvas. O mesmo governo federal que ordenou a primeira missão de guerra de tropas alemãs desde 1945 mistura-se agora com os manifestantes contra a guerra, patenteando a pose de pacifistas profissionais. E os mesmos paladinos, que passaram todas as suas vidas a puxar o lustro às maçanetas em Washington, ensaiam a revolta diplomática dos anões contra a política de guerra da derradeira potência mundial. É esta atitude que é designada como "corajosa" pelos conhecidos moralistas de serviço da inteligentsia de pacotilha moderada e democrática, em cujo seio já voltam a despontar instintos primaveris vermelhos e verdes, semelhantes aos que se fizeram sentir outrora, no Maio das políticas alternativas das ilusões dos anos 80.
Não restam dúvidas de que para se poder voltar a tocar repetidamente o disco nostálgico de uma política de Paz esquerdista e social-democrata, ao arrepio de toda a experiência acumulada, é preciso acima de tudo uma coisa: memória ultracurta. No entanto, os xerifes adjuntos da polícia mundial tão pouco se transformaram em lutadores pela Paz e críticos do imperialismo global do Ocidente quanto questionam, por pouco que seja, os constrangimentos da sociedade capitalista de mercado global. Antes pelo contrário, o que está em causa é precisamente a execução desses mesmos constrangimentos sob as condições de uma crise agudizada. As forças armadas alemãs não só permanecem no Kosovo, no Afeganistão, no Koweit e sabe-se lá mais onde, como preenchem funções subalternas de todo o tipo nos preparativos da intervenção militar dos EUA contra o Iraque, e até estão a sofrer uma acelerada transformação em tropa suplente da máquina militar dos EUA para operações à escala global. A aguda diferença táctica face à administração Bush não é substancial, reflectindo apenas posições de partida diferentes, perante a ameaça de uma crise económica mundial após o fim da conjuntura das bolhas financeiras.
Os EUA, como única superpotência que resta, perante a recessão económica apostam tudo na capacidade operacional do seu aparelho militar sem concorrência. Como potência protectora global do capital, ensaiam a clássica fuga para a frente, mesmo quando o que está em causa já não pode ser anexações à moda da primeira guerra mundial. A ideia é manter de qualquer modo o fluxo global de capitais com base no poderio militar da última potência mundial. Mas o que se pretende antes de mais é flanquear a dura administração da crise no interior com um ambiente de massas patriótico, que se legitima através de uma relação externa ideologizada como "messiânica" face ao resto do mundo. Uma parte dos países da UE e do terceiro mundo segue esta linha aventureira da camarilha Bush – em parte com receio das pressões dos EUA, em parte na vã esperança de que algo venha a pingar para o seu lado.
A superficial dissidência política da RFA, da França, da Rússia e, talvez, da China, apoiada por partes da UE e do terceiro mundo, deve-se mais ao receio de que a disseminação desenfreada das guerras de ordenamento mundial, opção favorecida pelo governo dos EUA, possa acelerar o processo de crise global e torná-lo incontrolável. Sobretudo, porém, e contrariamente ao que se passa nos EUA, trata-se de uma medida para flanquear os iminentes cortes drásticos na estruturas sociais e económicas. Por falta de peso e operacionalidade militar, na Europa não é pensável um imperialismo de crise patriótico e messiânico como nos EUA. Contrariamente a Blair e outros chefes de governo europeus, Schröder e Chirac encenam a diferença táctica relativamente aos EUA face ao Iraque, a fim de instrumentalizarem o ambiente de massas europeu contrário à guerra para a sua política de crise interna. Do que se trata não é duma política substancial contra a guerra ou duma crítica ao capitalismo global do Ocidente, mas duma espécie de negociata com a consciência das massas: Apela-se de forma calculada ao mero ressentimento antiamericano (permeado de sentimentos antisemitas), para se poder executar duras contra-reformas sociais à maneira dos EUA.
Os falcões da desmontagem social há muito que anseiam pelo tiro de partida. O superministro Clement, na pose do eterno "homem de acção", quer ultrapassar as propostas da comissão Rürup pela direita. E, face aos ultra-realistas da nova fracção dos Verdes, o FDP já quase parece dado ao romantismo social. Esses senhores pretendem embolsar um Prémio da Paz que não custa um chavo, nem sequer uma participação continuada em intervenções policiais à escala mundial, para poder descarregar todo o fardo dos custos da crise sobre os ombros da população. O que está em causa não é apenas a disposição das massas, mas igualmente as eventuais resistências políticas e institucionais no seio dos sindicatos, do SPD e da quase desaparecida ala esquerda dos Verdes.
Se a razão partidária já não chegar para encher as bocas, tal será conseguido em última instância pela "política de Paz" meramente táctica. Que burocrata social keynesiano de esquerda ou honrado representante de interesses gostaria de matar à traição o neófito chanceler da Paz no campo da política social? Com toda a candura, isso mesmo foi dito pela "Wirtschaftswoche", pasquim de combate por excelência do radicalismo de mercado: "Sob o mote ‘coragem para a paz e coragem para a mudança’, Schröder quer aproveitar a preocupação da população com uma guerra no Iraque para impor reformas decisivas."
É precisamente o que condiz com o político mediático chamado Schröder. Se o cálculo resultou mesmo à justa nas recentes eleições para o parlamento federal – por que não haveria de resultar também na desmontagem social acelerada? Quem de futuro, como sócio de segunda do seguro de saúde obrigatório, tiver de viver desdentado, pode encarar o facto como um contributo para a Paz no mundo e como um "corajoso" acto de resistência contra a arrogância da potência mundial USA. Sem capacidade financeira para ter dentes na boca, mas com uma boa consciência alemã em troca: eis o verdadeiro idealismo.
(Neues Deutschland, 07.03.2003)
Tradução de Lumir Nahodil