Sobre o lugar da "Ideologia Alemã" na obra de Marx
Ruy Fausto
O presente texto é parte de uma das seções de "Marx: Lógica e Política - Investigações para uma Reconstituição do Sentido da Dialética", vol. 3, que será publicado em breve. A seção se chama "A Apresentação Marxista da História - Modelos", foi escrita em 1987-88 e inserida na minha tese de livre-docência, defendida na USP em 1989. O presente fragmento foi apresentado em conferência no quadro do colóquio sobre "A Ideologia Alemã", realizado na USP em 1997. O texto original visa a distinguir três linhas teóricas no interior do corpus marxiano, representadas respectivamente: 1) pelo "Manifesto Comunista" e por "A Ideologia Alemã"; 2) pelo "Capital" e os "Grundrisse"; e 3) pelos "Manuscritos de 1844". Cada um desses modelos revela um estilo teórico relativamente original e coerente. Tento reconstituir cada um deles no que se refere à idéia de história, de teoria, de ideologia, à relação ao tempo, à idéia do comunismo etc., tanto no plano do discurso explícito como no discurso em ato. O fragmento se refere à primeira parte, mas fui obrigado a me limitar essencialmente à "Ideologia Alemã". W abrevia Marx, "Werke" (Obras), Berlim, Dietz. (A) indica que os grifos são do autor do texto citado; (F), que os grifos são meus. MLP abrevia "Marx -Lógica e Política".
O primado da prática No primeiro modelo, o do "Manifesto Comunista" e da "Ideologia Alemã", o tempo domina o conceito. Não é o conceito que põe o tempo, mas o tempo que põe o conceito. Há por isso mesmo um primado da prática, que vai até o ponto de diluir as significações teóricas. Logicamente, isso aparece como um imperialismo do discurso posto, que reduz a muito pouco, e no limite aniquila, o discurso pressuposto. (O discurso pressuposto é o que estabelece a continuidade do movimento da história, o discurso posto é o da sucessão em princípio descontínua dos modos de produção.)
Assim como no "Manifesto", na "Ideologia Alemã" só se tem, a rigor, o discurso posto, e de uma maneira ainda mais clara do que no "Manifesto", porque a rejeição é absolutamente explícita, não há processo de constituição das pressuposições: "Os indivíduos que não estão mais subsumidos sob a divisão do trabalho, os filósofos os representaram enquanto ideal (Ideal) com o nome "o homem" e compreenderam a totalidade do processo que desenvolvemos como processo de desenvolvimento "do homem", de tal modo que sob os indivíduos (que existiram) até aqui em cada nível (Stufe) histórico foi interposto "o homem", (o qual) foi representado como a força impulsionadora da história. O processo total foi assim compreendido como processo de auto-alienação "do homem", e isso provém essencialmente do (fato de) que se interpõe sempre o indivíduo médio do nível posterior ao (do nível) anterior, e a consciência posterior aos indivíduos anteriores. Por meio dessa inversão, que desde o início faz abstração das condições efetivas, foi possível transformar toda a história em processo de desenvolvimento da consciência" (W 3, pág. 69, (F)).
Essa crítica a todo discurso pressuposto de constituição é solidária de uma crítica da filosofia, crítica que não deve ser confundida nem com a que está presente de forma mais ou menos implícita em "O Capital" ou nos "Grundrisse", nem com a que se encontra nos "Manuscritos de 1844". Na "Ideologia Alemã", o questionamento da filosofia não está longe da crítica positivista: "Lá onde cessa a especulação, na vida real, começa assim a ciência real, positiva, a apresentação da atividade (Betätigung) prática, do processo prático do desenvolvimento dos homens. Cessam as frases sobre a consciência, o saber real deve tomar o lugar delas. Com a apresentação da realidade efetiva, a filosofia autônoma perde o seu meio de existência. No lugar dela pode entrar no máximo um resumo dos resultados gerais que se pode abstrair da consideração do desenvolvimento dos homens. Separadas da história efetiva, essas abstrações não têm por si nenhum valor. Elas só podem servir para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a série das suas estratificações (Schichten) individuais. Mas elas não dão de forma nenhuma, como a filosofia, uma receita ou esquema, segundo o qual as épocas históricas podem ser acomodadas (zurückstützen)" (W 3, pág. 27 (F)). A filosofia é concebida assim só como sistema dogmático, no sentido mais grosseiro. Vê-se por outro lado que não se recusa toda a pressuposição, mas sim todo o processo de constituição e toda a pretensão à universalidade. Em lugar da universalidade -mesmo pressuposta ou negativa- entra a mera generalidade, "resumo" propedêutico.
Que representam desse ponto de vista as pressuposições? (1) As pressuposições são idéias, e as idéias são em primeiro lugar produtos: "A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe também (...) dos meios da produção espiritual" (W 3, pág. 46) (que entram na circulação espiritual). Elas são forças, potências espirituais, mesmo se (...) enquanto forças, não são diferentes da das classes a que correspondem (ver W 3, pág. 46-47).
Mas que representam elas em termos de significação? Sabemos que as idéias exprimem as relações materiais dominantes. Entre elas e essas relações existe uma distância que é fruto de uma transfiguração. Esta é ao mesmo tempo uma idealização e uma universalização. Por exemplo, a partilha temporária do poder, "entre o rei, os príncipes e a burguesia, se transfigura em doutrina da divisão dos poderes" (ver ib.). O conteúdo das forças em luta e a oposição delas são assim idealizados. Por sua vez, a particularidade se torna universalidade ilusória. O interesse de classe se transfigura em interesse de todos os membros da sociedade (o que, em princípio, no início do processo não é ilusório, quando a classe revolucionária representa efetivamente o interesse de todas as classes -ver W 3, pág. 48).
Há assim na ideologia uma espécie de "deslizamento" da significação, que é ao mesmo tempo um excesso de significação. Mas o que representa essa sobre-significação de que é preciso se desfazer? Ela é uma significação ou antes uma intenção de significação que não é preenchida mesmo negativamente. Tudo se passa como se, a exemplo do "Manifesto", no universo da "Ideologia Alemã" a frase "a liberdade é... a liberdade burguesa" tivesse a rigor não um sujeito pressuposto, que é negado pelo predicado, mas ainda menos do que isso. O sujeito não é ilusório no sentido de que o seu preenchimento só pode ser negativo. Ele não é absolutamente preenchido.
Trata-se de uma significação que permanece vazia e que se resolve em coisa, produto ou potência prática, ou se dilui em imagem (Phantasie, Hirngespint, Imaginação) (ver W 3, pág. 13), nonsense ou em nome. A teoria da ideologia que se encontra na "Ideologia Alemã" está assim marcada pelo materialismo reducionista, pelo psicologismo e pelo nominalismo. A ideologia é a "sombra da realidade efetiva" (ver pág. 23, a propósito da ideologia alemã).
A definição da "propriedade" que dá Destutt de Tracy é a ocasião de uma crítica das definições ideais-universais que oferece a ideologia. O tema tem um interesse particular, veremos por quê. Destutt relaciona propriedade com próprio e reduz a crítica da propriedade à crítica de tudo o que nos é "próprio". "Depois de identificar assim propriedade privada e personalidade, como em Stirner por meio do jogo de palavras com "mein" e "Meinung" ("meu" e "opinião') (...), em Destutt de Tracy com "proprieté" e "propre", se tira a seguinte conclusão (Marx cita agora Destutt): "É absolutamente inútil perguntar se não seria melhor que nada fosse próprio -em todo o caso isso significa perguntar se não seria melhor que fôssemos totalmente outros e mesmo (...), se não seria melhor que não fôssemos nada'" (W 3 pág. 210). Marx comenta o que lhe parece ser um jogo de palavras etimológico: "O burguês pode tanto mais facilmente provar a partir da sua língua a identidade entre relações mercantis e individuais ou também universais humanas, porque essa língua é ela mesma um produto da burguesia e por isso, assim como na realidade efetiva, também na linguagem as relações do tráfico se tornaram a base de todas as outras. Por exemplo, proprieté, Eigentum (propriedade) e Eigenschaft (o que é próprio), property, Eigentum e Eigentümlichkeit (propriedade característica) (...) valeur, value, Wert - commerce, Verkehr (intercâmbio) (...) que são empregados (nas línguas modernas) tanto para as relações (Verhältnisse) comerciais, quanto para as qualidades e relações (Beziehungen) dos indivíduos enquanto tais". (W 3, pág. 212-213).
O parentesco entre as duas significações tem assim uma base na ordem das coisas, mas, apesar disso, ou por isso mesmo, constitui essencialmente uma "ambiguidade". Na realidade, há uma oposição entre um significado e outro: "A propriedade privada efetiva é precisamente a mais universal de todas, o que não tem nada a ver com a minha individualidade, (e) mesmo a anula (umstösst). Na medida em que valho como proprietário particular, não valho como indivíduo -uma proposição que os casamentos por dinheiro confirmam todos os dias" (W 3, pág. 211 (F)) (2). Além disso, a frase de Destutt permitia imputar ao comunismo uma contradição: "Todo esse absurdo (Unsinn) teórico (cf. pág. 83, "sem sentido" (sinnlos), "sem conteúdo" (Inhaltlos)) que busca refúgio na etimologia seria impossível se a propriedade privada que os comunistas querem suprimir não fosse transformada no conceito abstrato "a propriedade". Com isso (...) pode-se chegar facilmente a descobrir uma contradição no comunismo, no fato de que depois da supressão da propriedade (efetiva), (...) é possível descobrir muita coisa que se deixa subsumir sob "a propriedade'" (W 3, pág. 211, último grifo (A)).
O interesse desse desenvolvimento é evidente. É que em outros textos -dos "Grundrisse"- Marx se serve do sentido antropológico do termo "propriedade" para designar uma relação que está presente tanto no comunismo -então sob forma "perfeita"- quanto no pré-capitalismo. Esse sentido é sem dúvida oposto e contraditório -de modo diferente, de resto, conforme se considere o pré-capitalismo ou o comunismo- ao sentido que tem a propriedade no capitalismo.
Aparentemente, para o caso do comunismo pelo menos, não haveria nenhuma diferença entre esses textos e o que se lê na "Ideologia Alemã". Mas, precisamente, nos "Grundrisse" não se corta o fio semântico que une contraditoriamente um sentido ao outro. Isto é, põe-se a contradição entre os dois sentidos, e por isso mesmo se estabelece um contínuo pressuposto que une -isto é, separa- os dois sentidos. A diferença parece sutil, e ela de fato o é. Mas são sutilezas como essa que separam a razão dialética do entendimento. Basta pôr a contradição denunciada pelo texto citado da "Ideologia Alemã" para que o discurso de entendimento da obra de 1845 se transforme num discurso dialético. Basta assumir em interioridade a contradição que a "Ideologia Alemã" denuncia em exterioridade para que a pura dispersão histórica e o seu complemento, a teoria nominalista-historicista da ideologia, seja posta em xeque. Mas isso a "Ideologia Alemã" não faz -e não o faz de propósito. De fato há uma certa finura ou astúcia na ingenuidade anti-hegeliana da "Ideologia Alemã", porque Marx já se ocupara da dialética hegeliana, embora não tivesse chegado ainda a investi-la de maneira satisfatória na crítica da economia política.
Antes de analisar as consequências dessa redução das pressuposições para a idéia da revolução e do comunismo em particular, detenhamo-nos na idéia geral de história e de progresso da "Ideologia Alemã". Se de fato não há processo de constituição das pressuposições, há entretanto (como de resto também no "Manifesto") noções como as de natureza e civilização, que permitem escandir, mas sem negação, o conjunto do processo histórico. Por outro lado, no plano do discurso posto, assim como a propriedade ou as formas de propriedade caracterizavam o "Manifesto", a noção fundamental é aqui a de divisão do trabalho.
Se no "Manifesto" fala-se antes em opressão e em subordinação de uma classe a outra, na "Ideologia Alemã" tem-se mais a subordinação dos indivíduos -de todos os indivíduos- à divisão do trabalho. "A supressão da autonominação (Verselbständigung) das relações em face dos indivíduos sob a contingência, da subsunção de suas relações pessoais sob relações universais de classe etc. está condicionada pela abolição da divisão do trabalho" (W 3, pág. 424, (F)). "Subsumido "a ela" o indivíduo é "unilateralizado", estropiado, determinado" (W 3, pág. 422). Assim o dado fundamental é menos a subordinação de certos indivíduos a outros indivíduos do que a de todos a uma potência autonomizada. E "a divisão do trabalho" só se efetiva com "a divisão entre trabalho material e espiritual" (W 3, pág. 31). Então se estabelece uma subordinação material e espiritual dos indivíduos à divisão do trabalho (3).
A "Ideologia Alemã" apresenta uma sucessão de formas, cada uma das quais passa por um curso cíclico de desenvolvimento, maturidade e decadência. O problema de saber o que se conserva ao passarmos de uma forma a outra se coloca em termos diferentes, conforme se considera o pré-capitalismo ou o capitalismo. Até a época capitalista, o progresso da riqueza material é aleatório. As invenções se perdem ao sabor dos acidentes históricos, de tal modo que tudo deve começar de novo. A história da satisfação também segue aparentemente o processo cíclico do desenvolvimento das formas. Enquanto o sistema não entra em crise, as classes dominantes estão satisfeitas com a sua condição, e as classes dominadas, acomodadas àquelas. O mesmo vale para a liberdade, mas, no que se refere a ela, é preciso supor um movimento progressivo, para além dos ciclos internos, um movimento progressivo na história do conjunto das formas (na passagem de uma forma a outra), movimento que vale sobretudo às classes dominantes, mas que dentro de certos limites (e apesar do que se lê em certos textos) valeria também às classes dominadas.
Com o capitalismo -em particular com o capitalismo da grande indústria- a situação se modifica. O progresso da riqueza se torna acumulativo. Ao mesmo tempo, o caráter contraditório do progresso se manifesta. Em primeiro lugar, ao passar da época pré-capitalista à época capitalista, a liberdade se reduz, e também para as classes dominantes. Além disso, a satisfação ou manifestação de si, para utilizar a linguagem da "Ideologia Alemã", está ausente desde o início da nova forma, embora só potencialmente para a classe dominante. (Esse "potencialmente" se refere ao destino dos indivíduos, não ao destino da classe.) Assim, com o capitalismo, há ruptura de uma história que era essencialmente cíclica. A situação se modifica dentro da forma e nas suas relações com as formas anteriores. Na relação entre a forma capitalista e as formas anteriores aparece acumulação e progresso, embora progresso contraditório. Antes do capitalismo, havia ausência de progresso, ou um progresso limitado entre as diferentes formas, e um ritmo de caráter cíclico e não-contraditório no interior de cada forma. Entre o capitalismo e as formas anteriores há progresso-regressão e, no interior da forma capitalista, um ciclo que é desde o início contraditório.
Assim, de uma situação em que havia ciclo não-contraditório no interior de cada forma e progresso limitado ou ausência de progresso na relação de cada forma com o passado, passamos a uma situação em que há ciclo contraditório interno e progresso contraditório (progresso e regressão) na relação para com o passado. Os dois pólos fundamentais desse novo quadro são o progresso da riqueza objetiva e a regressão da liberdade. "(...) Na representação, os indivíduos, sob a dominação burguesa, são mais livres do que eram antes, porque para eles as suas condições de vida são contingentes; na realidade efetiva eles são naturalmente menos livres, porque mais submetidos a potências objetivas" (W 3, pág. 76, (F)). Essa regressão na liberdade significa que os indivíduos não estão mais ligados à comunidade (que por isso não é mais uma comunidade) senão por uma relação contingente. Há uma necessidade nessa contingência, e é essa necessidade da contingência que aparece como ausência de liberdade. Para o burguês, a relação positiva para com a sociedade está dada, ela é contingente, porque ele pode vir a perdê-la. Para o proletário, é antes a relação negativa que está dada, a contingência não é mais do que a possibilidade abstrata de que ele venha a obter uma relação positiva.
A "Ideologia Alemã" introduz ainda o conceito de Betätigung, atividade (operação), e o de Selbstbetätigung, que remete a uma história da satisfação. Trata-se de opor ao ciclo em si mesmo contraditório, que corresponde ao caso do capitalismo, um esquema cíclico não-contraditório que vale para o pré-capitalismo (os indivíduos são aí "auto-ativos", isto é, sua atividade corresponde à sua individualidade no início e até a maturidade de cada forma, se estabelecendo mais tarde uma ruptura): "Enquanto a contradição (...) não ocorreu", as condições são, para os indivíduos, condições que pertencem à sua individualidade, (...) condições da sua automanifestação (Selbstbetätigung) e são produzidas por esta automanifestação" (W 3, pág. 71-72 (F)). Na época burguesa, a história da satisfação não segue mais um ritmo cíclico: "Surge uma diferença entre a vida de cada indivíduo até onde ele é pessoa e (a sua vida) até onde ele está subordinado a um ramo qualquer (da divisão) do trabalho (...)" (pág. 75-6).
Essa ruptura vale a fortiori para o proletário. E nesse caso ela é efetiva e não potencial; "a única conexão que eles (a maioria dos indivíduos, os proletários) mantêm ainda com as forças produtivas e com a sua própria existência é o trabalho, que para eles perdeu toda a aparência de auto-satisfação (...)" (W 3, pág. 77 (F)). O caráter contraditório do progresso na época da burguesia aparece assim na "Ideologia Alemã" como contradição entre o progresso da riqueza (enquanto riqueza objetiva) e a regressão da liberdade e da satisfação. Esse tema "antiaufklärer", que sob diversas formas está presente em todos os modelos da apresentação marxista da história, se encontra também no "Manifesto", sobretudo sob a forma da regressão nas condições de vida do proletário. O lado regressivo do progresso, no "Manifesto", é resumido pela idéia de que há um excesso de civilização -"hybris" da civilização- e que esse excesso equivale à barbárie: "Nas crises irrompe uma epidemia social que apareceria para todas as épocas anteriores como um absurdo -a epidemia da superprodução. A sociedade se encontra bruscamente remetida a uma condição de barbárie momentânea; uma miséria, uma guerra geral de aniquilamento parecem ter-lhe cortado todos os meios de vida; a indústria, o comércio parecem aniquilados, e por quê? Porque eles possuem civilização demais, meios de vida demais, indústria demais, comércio demais" (W 4, pág. 468 (F)).
E, neste ponto, "Manifesto" e "Ideologia Alemã" convergem na afirmação de que a forma burguesa de propriedade, ao contrário das formas anteriores, leva à destruição das classes oprimidas: "Toda a sociedade (que existiu) até aqui repousou (...) sobre a oposição entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas, para poder oprimir uma classe, devem-se assegurar a ela condições no interior das quais ela possa pelo menos garantir (fristen) sua existência servil" (W 4, pág. 473). A "Ideologia Alemã" fala de maneira mais radical na transformação -uma interversão- das forças produtivas em forças destrutivas, um tema que tem interesse, evidentemente, para além da crítica do capitalismo da grande indústria, e também para além do capitalismo em geral: "No desenvolvimento das forças produtivas surge um nível no qual são suscitadas forças produtivas e meio de produção que, nas condições existentes, só causam desgraças, que não são mais forças produtivas, mas forças de destruição (...)" (W 3, pág. 69 (F)). Mas não haveria saída sem a abolição da propriedade privada: "Já mostramos que os indivíduos atuais devem suprimir a propriedade privada, porque as forças produtivas e as forças de intercâmbio se desenvolveram tanto que, sob o domínio da propriedade privada, se tornaram forças destrutivas (...)" (W3, pág. 424, Marx sublinha "devem").
Embora nem o "Manifesto" nem a "Ideologia Alemã" se refiram a um fim da pré-história, está presente a idéia de que a história da exploração se esgota, porque as condições de produção da vida se transformaram em condições de produção da destruição. Esse tema dá um conteúdo, embora discutível, à idéia de que se trata da última forma. Observe-se que aqui não se compara uma situação interna ao capitalismo com uma situação interna relativa a uma outra forma, mas a produção capitalista em geral com todas as outras formas de produção. E não se fala em contradição entre forças produtivas e relações de produção, mas na transformação de forças produtivas em forças de destruição. O destino do capitalismo aparece de um modo mais ou menos apocalíptico. Entretanto, que a época burguesa traga consigo algo assim como a destruição -considerada como única na história- de uma parte da sociedade, constitui menos um discurso pressuposto sobre a história do que um tema que o substitui. A exploração não pode subsistir porque não há mais quem explorar: ela se esgota. A notar que aqui se pensa a destruição como provinda imediatamente da forma social, não da matéria (o que significaria como provinda só mediatamente da forma), como ocorre em geral na crítica pós-marxista do sistema.
A "Ideologia Alemã" apresenta entretanto alguns traços que a diferenciam do "Manifesto", no interior do modelo que ela partilha com ele. Se não há pressuposições realmente universalizantes, há entretanto a idéia de que a revolução comunista ataca a base (algo assim como a base comum ou geral) da sociedade que existiu "até aqui". Por outro lado, está presente como existência uma espécie de auto-educação universalizante do proletariado, a qual vai além da simples tomada de consciência (e portanto do movimento de auto-emancipação, no seu sentido imediato) tal como já se encontra no "Manifesto". De fato, um texto da "Ideologia Alemã" -que havia interessado a H. Arendt (ver "Da Violência", ap. 1)- afirma a necessidade da revolução não só pelo fato de que as classes dominantes resistirão às transformações, mas também porque só por meio dela o proletariado poderia se desembaraçar de todo o peso do passado "(...) tanto para a produção em massa dessa consciência comunista como para a realização da coisa é necessária uma mudança maciça dos homens, que só pode ir adiante num movimento prático, numa revolução: a revolução é assim necessária não só porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhum outro jeito, mas também porque a classe que derruba só numa revolução pode se libertar de toda a antiga merda e se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade" (W 3, pág. 70, grifei o final).
Essa auto-educação não é simplesmente uma tomada de consciência das necessidades do presente enquanto presente. Ela é uma espécie de catarse em relação ao conjunto do passado. Assim, mesmo se falta um discurso pressuposto, há na idéia de revolução que propõe a "Ideologia Alemã" uma segunda instância de totalização. A revolução só é possível por meio de uma auto-educação que elimine todas as marcas do passado. Só assim será possível uma "nova fundação da sociedade".
Que é o comunismo para a "Ideologia Alemã"? Ele é antes de mais nada o fim da divisão do trabalho. O texto é bem conhecido: "(...) Fazer isso hoje, aquilo amanhã, caçar depois do almoço, tocar bois de tarde, criticar depois do jantar, conforme eu tenha vontade, sem jamais me tornar caçador, pescador ou crítico" (W 3, pág. 33). E, se o comunismo representa o fim da divisão do trabalho, o fim da divisão do trabalho é ao mesmo tempo a supressão do trabalho. Esse movimento é importante tanto no que se refere ao conteúdo quanto no que se refere à forma.
Trata-se de abolir o trabalho e não de estabelecer o "trabalho livre": "(...) Os servos em fuga só queriam desenvolver livremente (...) sua condição de vida já existente e por isso (...) só chegaram ao trabalho livre; os proletários, para se fazerem valer pessoalmente, devem suprimir a sua própria condição de existência (...), o trabalho" (W 3, pág. 77(F)). Se o trabalho é suprimido com a supressão da divisão do trabalho, é que só posto como divisão do trabalho ele é trabalho, um pouco como, só posto como o valor, o valor é valor (cf. MLP 1, 3). O trabalho não posto como a força que representa a divisão do trabalho não é trabalho, embora tenha a determinação do trabalho. Tem-se aqui uma articulação que em grandes linhas é dialética, num texto que não é essencialmente dialético. Como no "Manifesto", a pressuposição privilegiada não é a satisfação nem mesmo a riqueza (pelo menos comparativamente a outros textos), mas a liberdade (ver W 3, pág. 74, (F)). A liberdade se contrapõe aqui a uma situação em que os indivíduos são oprimidos menos por indivíduos de outra classe, como no "Manifesto", do que pela sua própria atividade parcelada. O comunismo como reino da liberdade seria a negação de uma situação histórica em que, de algum modo, todos são oprimidos.
A apresentação da história tal como se encontra no "Manifesto" e na "Ideologia Alemã" representa o que se pode considerar como o modelo historicista (ou quase-historicista) no interior do pensamento de Marx, modelo que infelizmente é muitas vezes tomado como se representasse simplesmente a apresentação da história -de Marx.
Nele, pode-se dizer, o tempo e a ação dominam o conceito e a teoria. Não há discurso pressuposto, isto é, não se põe o discurso pressuposto enquanto tal. Há porém uma espécie de pressuposição da pressuposição, e em mais de um aspecto. Vimos que a idéia de uma revolução visando à base de comum da história "até aqui", assim como a exigência de uma auto-educação universalizante do proletariado vão no sentido de uma totalização. As expressões "nova fundação da sociedade" ou nova "abolição da divisão do trabalho" infletem essas indicações no sentido de uma totalização que não será só retilínea, mas também circular. Mas não se vai até a posição do discurso pressuposto. Isso significaria que o "Manifesto" e a "Ideologia Alemã" propõem um esquema de simples dispersão das formas de propriedade? Não. E não só devido à presença dos esboços de totalização indicados. Antes pela razão contrária. A ausência de um verdadeiro discurso pressuposto tem paradoxalmente como consequência a introdução de uma espécie de contínuo e, até certo ponto, mesmo de um finalismo na história, embora a recusa em totalizar venha de um impulso explicitamente antifinalista. É como se um discurso totalizador continuista (mas continuista "malgré lui") e um discurso posto descontinuista se sustentassem um ao outro em forma de uma "má" contradição (4). A ausência de um deles faz com que um se interverta no outro. A pura dispersão é continuismo.
Poder-se-ia também dizer, na mesma direção, que esse discurso que se apresenta como essencialmente prático, isto é, cujos títulos de legitimidade são apresentados essencialmente na instância prática, precisamente pelo caráter unilateral, excessivo desse praticismo -no caso do "Manifesto" isso tem algo a ver, é verdade, com o gênero do discurso-, se interverte em discurso teórico mal fundado, em sistema dogmático. Ou, digamos, a antifilosofia estreita da "Ideologia Alemã" se interverte em má filosofia, em filosofia "sistemática" em sentido pejorativo. Os pressupostos que deveriam indicar a direção do projeto se perdem no movimento efetivo. "O comunismo não é para nós uma situação que deva ser estabelecida, um ideal segundo o qual a realidade efetiva terá de se orientar. Chamamos de comunismo o movimento efetivo que suprime as condições atuais" (W 3, pág. 35, (A)).
A exigência de desqualificar toda a utopia normativa vai longe demais, como se só houvesse duas possibilidades, o dogmatismo dos fins postos e a ausência pura e simples dos fins (a que equivale a simples presença do movimento efetivo). A recusa em pensar um fim "negado" (o qual se torna aqui um fim simplesmente negado) (5) tem como resultado um discurso que é tão identitário e dogmático como o seu oposto. O comunismo não seria mais do que um movimento efetivo. Mesmo que se pense a ação como autoconsciente etc., a liquidação abstrata do "ideal" introduz uma espécie de finalismo histórico: a história tende à realização do comunismo. Paradoxalmente o fato de não haver ainda elaborado a crítica da economia política que introduziria um finalismo do capital (isto é, um finalismo interior a um modo de produção) tem como resultado uma espécie de homogeneização da história, que não está longe de introduzir um esquema finalista no plano global (cf. MLP 2, 1, ap. 1).
Em resumo, o caráter em geral antidialético da crítica da dialética hegeliana a que procede a "Ideologia Alemã" tem como resultado contraditório uma espécie de dogmatismo filosófico e de totalização da história, precisamente o que se tratava de exorcizar. Com o "Manifesto Comunista" ocorre coisa semelhante. Se falta um discurso quase-totalizante, isso não significa que se tenha como resultado efetivo uma dispersão de formas históricas. Logicamente é o que se pretende, mas na falta dos conceitos fundamentais da crítica da economia política, mesmo no plano lógico a descontinuidade fica a meio caminho. E, no plano histórico, a falta de uma lógica da descontinuidade (o outro lado do discurso dialético) tem como resultado algo como um contínuo histórico, cujo ponto de chegada inevitável é o comunismo. Assim, sob mais de um aspecto, o discurso quase-historicista que se quer não-totalizante, antifilosófico e antifinalista se inverte no seu contrário.
Antes de concluir é preciso aprofundar ainda a lógica desse texto, de qualquer modo notável, que é a "Ideologia Alemã". Vimos que o que caracteriza a "Ideologia Alemã" -como também o "Manifesto"- é o fato de considerar a posição como equivalente da atividade: se o conceito não for imediatamente "adequado" (no sentido filosófico do termo "adequação"), mas "adequado" à atividade prática, ele é apenas determinado e não posto. E, sendo assim, ele não significa o que pretende significar. Nada mais característico da lógica da "Ideologia Alemã" do que a passagem em que Marx define o termo "comunista": "Fica evidente também a partir dessa discussão o quanto Feuerbach se engana quando, graças à qualificação de "homem comum", ele se declara comunista, (designação que é) transformada num predicado do homem, e assim crê poder transformar de novo numa pura categoria a palavra comunista, que no mundo atual designa o seguidor de um partido revolucionário determinado" (W 3, p. 41, (F)). "Comunista" é aquele que age como comunista. Se ele tiver apenas idéias comunistas, tem a determinação de comunista, mas não a posição. Se esse movimento tem alguma coisa a ver com o universo da filosofia pós-kantiana alemã, a referência não é certamente Hegel. Embora o texto tenha -como foi dito- uma ressonância historicista, há um paralelo possível com o pós-kantismo na figura da filosofia de Fichte.
A "Ideologia Alemã" e, em particular, as "Teses Sobre Feuerbach", que fazem parte do mesmo conjunto de textos, querem realizar o "lado ativo" que só o "idealismo" desenvolveu. E criticam a tradição materialista por não ter considerado o objeto, a realidade, subjetivamente (6). Como em Fichte, "atividade", "auto-atividade" e também "vida" são termos-chave. Trata-se nos dois casos, embora em sentidos diferentes, de exorcizar de certa forma -não absolutamente em Marx- a coisa-em-si, por meio de uma conversão da sensibilidade e da intuição em atividade. Só que, evidentemente, se em Fichte a atividade é posição, na "Ideologia Alemã" a posição é atividade. E a exorcização da coisa-em-si em Fichte se faz antes por uma interiorização do "sensível" do que por uma exteriorização dele; por isso, a transcendentalidade fichtiana cairia sem dúvida sob a crítica do "misticismo", tal como se encontra na tese oito, e em geral na "Ideologia Alemã". Não é menos verdade que há uma certa homologia entre as duas "demarches".
São Paulo, domingo, 04 de março de 2001
Ruy Fausto é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor de filosofia na Universidade Paris 8, autor, entre outros, de "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana -A Produção Capitalista como Circulação Simples" (Paz e Terra).