UM PROCESSO FUNDAMENTALISTA

UM PROCESSO FUNDAMENTALISTA

Atanásio Mykonio

Hoje não tememos mais o Sol nem a Lua. Sabemos onde estão e qual a sua relação com o nosso cotidiano. Esses elementos da natureza não nos são mais desconhecidos, pois os sabemos por meio da ciência. Uma certeza existencial nos faz imaginar que estamos livres do medo que a ignorância provoca por não conhecer os efeitos de uma relação aparentemente desigual. Com a sociedade do esclarecimento, a impressão que fica é a de um caminho para superar a ignorância, tendo como objeto do conhecimento a natureza e, concomitantemente, a realidade.

Porém, paradoxalmente, ao compreendermos os mecanismos da natureza, nossa mente foi capaz de abstrair da realidade o que lhe interessava, a tal ponto que o real se tornou uma complexa e intrincada relação entre abstrações e sistemas. Por algum motivo, provavelmente em virtude dos mecanismos determinados pelo pensamento, temos a idéia corrente e recorrente de que há uma realidade em algum lugar, uma realidade que se tornou a expressão da perfeição. Uma perfeição da qual não podemos saber se de fato é ou se apenas é o reflexo induzido de nosso pensamento.

O mecanismo racional se institui de tal forma que o paraíso é uma coisa para além do pensamento, o que não parece ser uma realidade real.

Por outro lado, em um mundo com tantas leituras da realidade, com posturas multiformes diante da realidade, as religiões estão cada vez mais progredindo e expandindo seus liames. O mal-estar, mais uma vez se instala na sociedade humana. O que dizer das religiões? Como entendê-las em um mundo científico-tecnológico e cujas relações sociais atingem a fronteira da mudança, cuja crise dos paradigmas é a marca da pós-modernidade?

Durante algum tempo no século XX, as religiões tinham aceitado uma dose relativamente baixa de participação nos destinos sociais. Tinha-se a impressão de que as religiões organizadas aceitavam a era da cientificidade e da tecnologia; aceitavam, por seu turno, que as sociedades podiam realizar sua existência política e social. Muito disso se deve ao fato de que os movimentos políticos de inspiração socialista, bem como a idéia da democracia liberal, esses fatores tiveram forte impulso para colocar as religiões num sítio específico.

Além disso, é preciso não deixar de constatar que a sociedade, aparentemente, tinha alcançado alguns paradigmas sociais muito sólidos, com características próprias, desenvolvendo assim valores culturais que marcaram a vida da sociedade das massas, em outras palavras, a sociedade industrial. essas características tinham um reflexo na vida moderna. Os bens de consumo, a forma como a sociedade se organizara em torno dos tempos do trabalho e da indústria, os processo de fabricação, cuja determinação se dava pela máquina e pela mecanização em grande escala. Além desses aspectos, a organização em torno dos tempos individuais, criando um universo de individualidade que era, paradoxalmente, determinado pelo tempo do trabalho. A família, nesse sentido, se fragmentara, vista como um núcleo, um modelo reduzido a poucos indivíduos, criando um novo modelo social de relações urbana.

A educação foi um outro fator que massificou certo tipo de conhecimento, com origem na ciência compartimentada em ciências. A educação de massas deu um grande impulso às novas formas de relação social na modernidade.

Esses elementos acima elencados foram promotores de uma mentalidade moderna, que inspirou as sociedades, em especial a Ocidental, a criarem mecanismos de distanciamento em relação às religiões. Mesmo nos países e continentes com realidades sociais de dependência econômica, as religiões estavam num processo de torpor social.

O modelo social pôs-se em franca mudança. Todas as crises sociais, que passam pelos questionamentos dos paradigmas e se infiltram nos conflitos da própria existência humana, têm como origem, provavelmente, um ponto de mutação, um momento de mudança que coloca um novo eixo entre o que se entendia por real e o que se passa a viver, como de fato o real se apresenta.

Nesse momento em que um novo eixo se coloca, as estruturas humanas, sociais, sejam elas coletivas ou individuais, entram em crise, são postas em cheque, experimentam a incerteza, o desespero, o medo, a insegurança, o pavor. A mudança social que atinge os grandes paradigmas constituídos no período de auge dos sistemas, não acontece repentinamente nem se verifica numa periodicidade em curtos intervalos de tempo.

A mudança social revela uma profunda e esmagadora mudança de rumo, que atinge o seio das relações sociais, que estabelece um novo eixo com novas necessidades, novas formas de produção de bens, novas perspectivas na distribuição das informações, novos conteúdos para o conhecimento. A mudança social gera necessidades que são de difícil apreensão nos primeiros períodos. A realidade muda, a leitura do mundo entra em choque, as verdades são postas à prova e uma multidão de pessoas se vê desamparada, no interior do processo de mudança. Porém, mudança e transição parecem não andar juntas. No entanto, andam, ao menos por um período em que a transição passa a ser a marca para a mudança.

Em sistemas bem estabelecidos, as verdades não são postas em questão. Quando a mudança surge, as coisas entram num processo de incerteza. A realidade passa a ser mais forte que o mundo das idéias. Nesse sentido, bastaram quase 200 anos para que a sociedade planetária se convencesse de que tudo estaria já, de alguma forma, respondido, mesmo para aqueles que tinham alguma suspeita em relação ao modelo econômico.

Mas eis que a mudança social traz novos problemas. A fragmentação pulveriza a sociedade das massas. Nessa sociedade, as certezas perdem o foco centralizador. As religiões são o espectro que resguardam as verdades que não podem mudar. Diante do novo e do inusitado, tudo parece perdem o sentido e as religiões, novamente, passam a ser reduto seguro ante o desconhecido. Dá-se assim a revanche das religiões e o mais grave: uma revanche com coloração fundamentalista.

O fundamentalismo se alastra como uma praga. No entanto, para desastre da pós-modernidade, o fundamentalismo não se dá conta de que é fundamentalista. Com o fundamentalismo não há diálogo. O fundamentalismo se baseia numa leitura esquizofrênica dos livros sagrados correspondentes. Diante dessa corrente que se alastra por todas as facções religiões e por todas as religiões organizadas, pouco ou muito pouco pode ser feito a não ser um processo decisivo de reeducação, promovido pela sociedade que acredita no diálogo.

Qualquer concepção de democracia fica ameaçada pelo fundamentalismo. Não há perspectivas para a aproximação e para o diálogo. Com o fundamentalismo, as respostas são dadas de forma clara, distinta, inquestionável, irrevogável, uma certeza da qual não se pode duvidar, em cuja verdade o fundamentalismo se assenta, voltando a assumir a referência e o rumo do cotidiano das pessoas.

O fundamentalismo dá respostas que são acachapantes, de modo que não reste qualquer indagação. Os livros sagrados são interpretados com o propósito de ler ipsis literis o que contêm. O conteúdo não é contextualizado, não pode ser apresentado com as forças relativas da história, pelos acontecimentos, pela realidade, simplesmente é aquilo que está escrito e assim deve ser determinada a sua interpretação.

A confusão estabelecida pelo fundamentalismo é tão grande e extensa que tem-se a nítida impressão de que há um mundo científico, que determina uma parte de nossas vidas; há o mundo da possibilidade, ou probabilidade, como forma de realização da existência e, por fim, um mundo mágico, dogmático, enigmático no qual Deus se relaciona com o homem de forma mítica, transcendente, interferindo no acaso para realizar as vontades do homem. Este se encontra em um momento de impotência existencial, uma impotência que o atinge em todos os seus níveis, sejam eles intelectuais, afetivos, espirituais, etc.

Deus parece estar no comando da vida e dos acontecimentos. Quando não se tem o controle, Deus é acionado. Quando se está no controle, é porque Deus está agindo. De uma forma ou de outra, desumaniza-se o homem, perde-se a sua condição de limite para a realização da sua existência e da realidade. O que importa é que Deus esteja em tudo. Não se tem claro se é um panteísmo ou se uma forma emergente de mito. O fato é que Deus assume a vida e o cotidiano. Em tudo se vê a presença Deus. Em todos os fatos, Deus é evocado. Diante do inesperado, Deus é a única solução.

Se o carro enguiça, Deus é chamado. Se falta dinheiro, Deus é acionado. Se a compulsão invade a vida íntima das pessoas, Deus é o caminho. Se se perdeu a chave da casa, Deus é chamado para dizer onde está a chave. Se a doença nos acomete, Deus é o remédio.

Essa relação mágica com o mundo espiritual está se alastrando com um rastilho de pólvora. Em qualquer canto, estamos em contato com pessoas que imaginam viver um processo de abdução espiritual. São pessoas que atravessam paredes, flutuam, são curadas de cânceres, têm visões, falam com Deus, têm as respostas para tudo, e tragicamente sentem-se materialmente prósperas.

Toda a vida das pessoas é regida por um tipo de hipnose espiritual.

Nesse sentido, a herança que permanece é a do platonismo. Alma, corpo, mundo perfeito e mundo corrutível, a cidade de Deus e a cidade dos Homens. O platonismo se tornou a fonte perversa do fundamentalismo.

Quais são os grandes entraves quanto a uma aproximação de diálogo com os platônicos ou fundamentalistas?

1 – O mundo platônico é de duas categorias: o mundo perfeito e o imperfeito. O mundo imperfeito só será real quando for transformado, radicalmente, no mundo perfeito;

2 – O mundo perfeito se transforma em grandes sistemas metafísicos com os quais a sociedade mantém uma relação de coerção com os indivíduos;

3 – A estrutura do pensamento tende, pela sua natureza dialética, a uma síntese que, via de regra, passa a conceber a síntese como um sistema estático, imóvel, estabelecido como o fim da história do processo;

4 – A síntese não se realiza no pensamento, pois a realidade é movente, então é preciso um mundo extra-muros, um mundo perfeito em que a síntese já se tenha de fato realizado;

5 – Toda síntese a ser realizada como sistema metafísico, passa a controlar a vida dos indivíduos sob a forma de um processo fundamentalista de realização obrigatória;

6 – Nesse processo de realização, a liberdade perde o sentido e perde qualquer valor nas relações humanas;

7 – Com o fim da liberdade, as verdades se congelam, petrificam-se e se mostram irredutíveis;

8 – Dessa forma, o platonismo se torna um instrumento autoritário, perverso, utilitário, no qual o sujeito imagina ser autônomo e independente do mundo e da natureza, realizando um pretenso direito social e divino de controle do mundo;

9 – Assim, o fundamentalismo se materializa na vida dos indivíduos, de tal forma que assume a totalidade da dualidade humana, tudo é regido pelo fundamentalismo que tem sua raiz no platonismo;

10 – Todos sofrem e não se apercebem, todos se tornam escravos e felizes com o fundamentalismo e nada pode convencê-los de que há outras formas de vida e de leitura do mundo.

Com a mudança social, o fundamentalismo é mais do que a expressão de guetos religiosos, ganha cada vez mais adeptos e sues sistemas de controle invadem todas as rotinas sociais, varam as estruturas políticas e institucionais, transferem para o poder do Estado o braço raivoso da realização dos ideários fundamentalistas.

É preciso refletir com profundidade sobre as conseqüências do fundamentalismo no cotidiano social dos indivíduos. O aprofundamento desse processo exige a compreensão das realidades determinantes que deram assento para que o fundamentalismo deitasse raízes que se aprofundam e criam os novos paradigmas que, paradoxalmente, entrarão em choque com a mudança social que, por sua vez, é uma realidade inexorável.

Os dois mundos já estão em confronto e o futuro ainda não está realizado. Por isso, o pensamento deve ocupar o espaço que lhe é pertinente a fim de que luzes sejam lançadas nesse conflito que diz respeito a todos nós.

Atanásio Mykonio Filósofo

Novembro de 2003 Mogi das Cruzes - Brasil