O desespero do fim

O desespero do fim

Atanásio Mykonios

Em países como o Brasil, cujas características são de dependência ao modelo mundial de produção de mercadorias, a mentalidade é toda voltada para a moralidade do trabalho.

A tríade Trabalho-Dinheiro(Capital)-Mercadoria nos parece uma perfeição metafísica. Todos esperamos, de uma forma ou de outra, que esse sistema seja eterno "enquanto dure". Em outras palavras, sonhamos com um mundo em que haja trabalho para todos, salário para todos e mercadorias baratas para todo mundo.

Ao mesmo tempo que acreditamos nessas verdades metafísicas, somos compelidos pelo sistema a uma saudável competição, na qual os indivíduos devem interiorizar a idéia e até a certeza de que são melhores, uns em relação aos outros. Nossas preocupações ditas sociais são sempre voltadas nas relações determinadas pelo Trabalho-Dinheiro(capital)-Mercadoria.

Acreditamos que esse tripé é a solução exata para a justiça. Ele deve ser bom para todos, eterno, acessível, controlável, na medida do possível, extremamente confiável, eficiente, complacente, humano, e se possível deve conter valores religiosos.

Dentro do sistema, muitos o aceitam por completo. Mas uma parte considerável das pessoas encontra problemas relativos a um dos três pés da sociedade das mercadorias. Alguns não conseguem trabalhar, ou não encontram trabalho; os que encontram geralmente não satisfazem suas próprias necessidades. Muitos têm dificuldade com as mercadorias. Estes não aceitam a moral da mais-valia, entendem que o processo social não comportaria mais a imoralidade das mercadorias sendo expostas como carnes suculentas em açougues de luxo. É por isso que alguns querem distribuir as mercadorias como se fossem bens de uso e não bens de troca.

Mas parece haver um consenso quanto aos conflitos. Estes se alojam, na sua maioria, entre o capital e o trabalho. Os trabalhadores "honestos" (Kurz)1, são unânimes em dizer que o capitalista é o grande vilão da história, pois ele explora a mão-de-obra a ponto de enriquecer e até promover guerras a fim de manter o próprio sistema. esses trabalhadores querem se libertar dos capitalistas e não admitem superar a sociedade da máquina-trabalho.

Por outro lado, os capitalistas aceitam a mercadoria, não encontram nenhuma dificuldade com ela, aceitam-na de bom grado e até constroem teologias que dão sustentação ao sistema produtor de bens de troca.

Os dois lados, no entanto, ainda nutrem o mesmo sistema esquizofrênico. Ambos acreditam no valor do trabalho, determinado pela sua abstração recorrente, pois cada vez mais, como um moribundo, essa abstração se desordena em torno do desespero de sua própria sobrevivência.

É interessante observar a capacidade humana em construir grandes e complexos sistemas sociais que, por conta de sua evolução temporal, são atribuídos a uma metafísica, como se fossem eternos e eternizantes. A ontologia dos sistemas se confunde com as perspectivas estruturalistas e platônicas que dão uma explicação da totalidade existencial humana. Na verdade, podemos entender esses sistemas como promotores de uma dose elevada de desumanização. O homem perde sua capacidade de determinação, é apenas mais um que só pode ser explicado pela excelência do sistema. Tudo passa a ser o sistema. Algo que pode ser e não ser e que engendra de tal forma uma mentalidade ontológica da qual ninguém é capaz, por si, escapar ao domínio coletivo de grandes abstrações sistêmicas.

É certo, no entanto, que as coletividades não dão o suporte para a sobrevivência. Dão-nos a certeza de que somos herdeiros de uma determinada linguagem. É com os grupos que nos vemos culturalmente. Mas é preciso reconhecer que a sociedade das mercadorias, existente no processo da sociedade da Máquina-Trabalho foi organizada e se cristalizou como uma sociedade de massas e massificante, cujos paradigmas se estabeleciam pela ordem de abstração sistêmica. Os grandes sistemas explicavam toda a existência, até mesmo como herança positivista da sociedade do progresso e da sociedade científica.

As abstrações sistêmicas são como determinações ontológicas, criam sua própria lógica e sua tautologia. São como fins em si mesmos. A grande ilusão que as abstrações sistêmicas produzem em seus opositores é o fato de que estes imaginam superar o sistema com o próprio antídoto sistêmico. Isto é, quase todas as ações que se opõem à abstração sistêmica têm por escopo, inconscientemente, a manutenção mesmo do sistema. Isso se deve ao fato de que a abstração sistêmica é de tal dimensão que abarca os pólos contrários dentro do próprio sistema.

As sociedades organizam-se em torno de grandes e pequenos sistemas abstrativos. É possível reconhecer como notória a organização de muitos sistemas menores em um grande sistema. São instituições das mais diversas, algumas fechadas, outras mais sintonizadas com as demais instituições. Quanto mais abarcante a abstração sistêmica, mais a tendência é de considerá-la como ontologicamente sensata e que deve apenas sofrer ajustes de rumo.

É por essa razão que no interior das abstrações sistêmicas, os opositores são ferozes e se digladiam para obterem o poder que lhes confere a ontologia do sistema. Não sem razão é que capitalistas e comunistas se enfrentaram, tendo como objetivo a conquista do poder sobre o sistema total.

Nos parece que as sociedades não conseguem prescindir da construção de abstrações sistêmicas. São como um fungo que cresce na história humana. Na verdade, trata-se de um conflito histórico entre as forças do indivíduo e as forças coletivas.

Essa realidade diz respeito a um corte histórico. No auge de um sistema abstrato, que controla a vida e o cotidiano, os paradigmas são de tal ordem e dimensão que pouco ou quase nada se tem a fazer a não ser refletir sobre aspectos conjunturais que determinam a própria abstração sistêmica. No auge do sistema, os valores pregados por ele são, de certa forma, cristalinos, por isso é mais fácil encontrar opositores, também muito bem definidos.

Os paradigmas que sustentam os sistemas abstrativos não se sustentam por muito tempo, uma vez que são criados e legitimados por premissas históricas determinadas pela limitação da experiência humana. A experiência humana é limitada por causa da construção de hipóteses que, mesmo sendo de probabilidades infinitas, ainda assim são limitadas, pois o infinito é, por si, limitado.

Como fruto dessa experiência, tendendo quase que naturalmente a uma racionalização ideal ou, como queiram, perfeita, as premissas e, por conseguinte, os paradigmas, têm seu declínio determinado pela sua limitação. No processo de declínio, os paradigmas não são mais capazes de sustentar e explicar a realidade. A crise se instaura, e com a crise, é possível que o desespero tome conta das instituições que compõem o sistema.

Por outro lado, o desenvolvimento de hipóteses, em uma escala progressiva, nos dá uma perspectiva inusitada aos meandros das abstrações sistêmicas. Da mesma forma que as hipóteses criam e impulsionam sistemas, no interior dos processos, é possível observar que as hipóteses apontam para possibilidades, tantas quantas forem possíveis de serem construídas a partir de combinações que têm como referência as hipóteses anteriores. Isto significa que nenhuma hipótese se funda unicamente em um corte sem passado, sem uma estrada anterior. Significa dizer que todos os modelos de hipóteses percorrem um caminho construtivo que nos lança para frente, modelos esses que se realizam na gama de probabilidades, uma vez que a história e a trajetória do seu edifício das hipóteses podem advir de uma adversidade sem paralelos.

Uma das características prováveis é a fragmentação social. Em algum momento da história da abstração sistêmica, há um ponto de mutação em que o declínio se instaura com tal intensidade que as forças institucionais não são capazes de barrar a mutação. O ponto de mutação se instaura e com ele o processo de lança para o futuro, como um projeto que deve realizar hipóteses.

Pode parecer um processo relativamente determinista. A lógica do sistema de abstração entra em conflito, talvez não previsto de forma determinista, mas porque exatamente entram em cena novos elementos impostos pela realidade e pela experiência, que apontam incompatibilidades existenciais e essenciais com os paradigmas atuais. Dessa forma, o conflito se deflagra.

Agora, é possível compreender com mais clareza que o sistema abstrato, que gerou e nutriu a sociedade do trabalho, está no processo de conflito ainda não totalmente deflagrado. O ponto de mutação está em alta voltagem, isto é, o elemento que determina a mudança do modelo social está posto de forma inexorável. Esse elemento é constituído pela sociedade da informação e pela tecnologia que está à frente da ciência, como testa-de-ferro, potencialmente mais ativa e rápida como um rastilho de pólvora.

A realidade é uma relação contínua entre o humano e o mundo. Não há, necessariamente, um primado. A tecnologia, determinada pela cientificização dos modelos abstrativos como reflexo que toma forma na presença das máquinas, é um fator que localiza o ponto de mutação.

A imanência

Em um trocadilho insípido, podemos dizer que a imanência se torna um imã quando atrai opostos. Os opostos devem ser considerados com identidades próprias, mas vistos sob o foco da imanência, sua oposição é apenas horizontal, ou como queiramos, linear, não há, entre as oposições a perspectiva de furar o sistema ou o bloqueio determinado pelo sistema. Os opostos nem sempre levam em conta que a conflagração de conflitos entre ambos pode apenas representar, não uma superação do sistema, mas simplesmente a sua manutenção.

Custa a uma das partes ou a ambas, compreender que sua oposição sincera nada mais é que a reprodução "sincera" do próprio sistema que a oposição pensa combater com tanto afinco.

Sob um mesmo teto, os defensores da máquina-trabalho e os opositores do sistema capitalista, nem sempre lutam por causas antagônicas. Muito freqüentemente, são faces de uma mesma moeda.

Por outro lado, quando um sistema está no seu ápice, a imanência atrai decisivamente um número maior de simpatizantes. Exatamente porque em seu auge, o sistema se torna hegemônico, institucional, uma ABSTRAÇÃO-SISTÊMICA, determinando as relações sociais e sendo explicado – o sistema – pelos paradigmas que se cristalizam. E mais que determinar as relações entre indivíduos, determina, em certos aspectos, remodela a cultura.

O poder, que procura gerir o sistema, torna-se o poder que não ousa destruir a ABSTRAÇÃO-SISTÊMICA, mesmo que seja um poder exercido com uma certa autoridade opositora; se esse poder estiver mantido com a perspectiva imanente, será fatalmente tragado pelo sistema, em todas as suas determinações e configurações. Nesse sentido, as contradições apontadas pelas oposições, quando eram oposições, são vividas na sua totalidade quando assumem o poder.

A imanência a que todos se submetem, pode ser um aspecto interessante a ser assumido por parte de quem deseja apenas manter o poder. Se as oposições viveram, sobretudo, sob a ótica institucional da ética política, defendendo valores como honestidade, igualdade, justiça, probidade, respeito às leis, mas, contudo, permaneceram na imanência do sistema, inevitavelmente são atraídas pelo poder e quando lá se instalam, são um arremedo de poder, são uma colcha de retalhos e não espelham mais o ideário que as levou ao poder, sepultando o que fizeram no passado. Daí os conflitos sociais, éticos, morais, que advêm da necessidade de conquistar ou, mais objetivamente, tomar o Estado.

Uma parte dos grupos políticos, de outra forma, assume o sistema e atua em favor dele. São grupos que atuam com todas suas forças para mantê-lo, fortalecê-lo, para fazer com que seja capaz de progredir e que tenha legitimidade social e política, a fim de que sobreviva. A imanência, para esses grupos, talvez não tenha qualquer sentido. Para eles, o mundo se explica no sistema e sem ele o que existe é a relação da não-identidade.

Em certos aspectos, na relação entre o poder do sistema e seus detratores, cabe mais aos opositores encontrarem formas para furar o sistema e propor algo novo. Contudo, certos paradigmas que permeiam o sistema são, muitas vezes, considerados como antecedentes ao sistema, como formas ontológicas que perpassariam esse ou aquele sistema e em particular, o sistema que vige no momento histórico contemporâneo.

Nesse sentido, alguns são capazes, mesmo estando em posições antagônicas, admitirem e concordarem, meio a contra-gosto, que alguns valores são transcendentes ao sistema e que devem ser preservados a todo custo.

Outros grupos consideram que alguns valores, possivelmente, tenham sido subvertidos pelos controladores do sistema. Para esses grupos, a oposição teria o papel de recolocar os valores no sistema e, dessa forma, eles (os valores) teriam o poder de transformar o sistema em alguma coisa melhor, resgatando a idéia inicial da teleologia destinada aos valores e que foram prostituídos pelos grupos de poder que gerem o sistema.

Então, há uma idéia de que os valores, transcendentes, metafísicos, existem e que foram, de alguma forma, manipulados pelos que ora estão no poder.

Outra idéia comum é a de que os detentores do poder são os "donos" do sistema, e que são eles que, ao exercerem o poder, manipulam os valores e os distorcem, fazendo com que os súditos sejam enganados e convencidos de que devem obedecer aos ditames do sistema. Nesse aspecto, os opositores que pensam assim, têm como objetivo tomar o sistema no seu todo, já que este é manipulado pelas elites dominadoras.

Alguns, também, e por outra parte, acreditam que o sistema é capaz de criar novos valores. Os defensores do sistema crêem que esses valores, em sendo criados, são definitivos, positivos, necessários e fruto da evolução inexorável que o sistema traz para a coletividade. Nesse aspecto, outrossim, os opositores são firmes em afirmar que, de fato, o sistema cria valores próprios, mas estes são contrários ao que defendem e por isso sentem-se legitimados a tomarem o poder e reverter os valores. Aqui, é importante perceber que, de alguma forma, se os opositores, consciente ou inconscientemente, fazem a crítica ao sistema, tendo em conta a sua imanência, serão tragados, inevitavelmente.

Mesmo com tantos entraves, é possível perceber que há valores que antecedem a um sistema, e estes entram nele e convivem com a formação de novos paradigmas; há outros valores que são criados e nutridos no interior do sistema, quando da sua evolução.

Em última instância, todos esses valores - que aqui não importa o seu conteúdo - são o resultado da determinação e construção de hipóteses, que se desenvolvem a partir da experiência anterior, do passado, e progridem como em forma de espiral, aumentando o seu foco e seu horizonte. Ao se lançarem para frente, como a necessidade inevitável em busca de respostas, o futuro se coloca na sua esplêndida possibilidade. São as hipóteses que nos dão os valores quando projetam o homem e sua coletividade para o futuro.

Os valores da imanência da Máquina-Trabalho

Ao pensar nos valores da imanência, no que concerne ao sistema da Máquina-Trabalho, o que rege as mentes comuns como determinação abstrata é o Trabalho, a Mercadoria e o Capital.

Nesse sistema, muitas são as formas de compreendê-lo. Os valores que permeiam a sociedade e que se tornaram uma tautologia, um axioma eterno, foram assumidos tanto pelos defensores do Capitalismo quanto pelos movimentos operários, movimentos de oposição sindical, pelos movimentos populares, que são uma realidade no contexto periférico do cenário global.

Esses valores são tão fortes que o que importa para os grupos de oposição é transformar o sistema e manter tais valores. Ironicamente, parte desses valores também é compartilhada pelos detentores do poder.

Trabalho e mercadorias. Para os opositores, a mercadoria deve permanecer controlada por uma entidade supra-individual, mantendo intacta a virgindade e a santidade do trabalho, pois, com ele, o homem, acreditam os opositores, será conduzido radicalmente à sua própria realização. E a realização da existência individual e coletiva determinada pelo Trabalho, organizando os tempos, as medidas, a cultura e o futuro do homem.

Em certa medida, as oposições são vítimas de um processo de armadilhas. O que fazer? Para muitos, o que resta é lutar ferozmente contra os capitalistas e arrancar-lhes toda forma de poder e todos os recursos para promover a igualdade.

Mas para ambos, detratores e situação o que deve permanecer incólume é o Trabalho, na sua forma mais abstrata. Essa abstração atinge vários níveis das relações sociais, do ponto de vista da categoria material da produção de bens de consumo, até a ABSTRAÇÃO, como uma imagem concebida em forma de nuvem a pairar pela mente coletiva, controlando as consciências.

Esse valor, mais arraigado que a Mercadoria, é trazido como um totem que explica a vida humana, que dá sentido à história do homem, que dá o primado do sujeito sobre o mundo, na sua forma mais acabada que é o esclarecimento. A ABSTRAÇÃO-SISTÊMICA absorve a idéia do Trabalho e a contemporiza de tal forma que permanece atual e com força renovada.

O que causa um ponto de mutação nesses valores é a máquina. A máquina gerida pela informação. O Trabalho-Abstrato é desordenado. Tudo se transforma em uma grande confusão.

A tautologia do Trabalho gerou outra, tão intensa e profunda quanto o Trabalho. Gerou a tautologia das mercadorias. Não se pode adquirir mercadorias sem o trabalho, sem o salário, sem o ganho "justo" do "trabalho" realizado como FORÇA SOCIAL ABSTRATA.

Eis aí um valor surpreendentemente novo para a humanidade. As mercadorias se tornaram mais fortes e poderosas que até mesmo o próprio Trabalho. Em certa medida, fica a idéia de que as Mercadorias são mais socializantes que o Trabalho em Abstração, porém, a imposição ideológica do sistema nos dá a certeza de que o Trabalho é o começo e o fim de tudo.

Mas o Trabalho começa a ser extinto. Não para os países da periferia. Para estes, ainda haverá uma legião de escravos a explorar: faxineiros, guardadores, vigias, pedreiros, digitadores, etc.

Mesmo com a extinção notória do Trabalho em forma de ABSTRAÇÃO-SISTÊMICA, os países da periferia, dependentes, não conseguem encontrar alternativas que não as de melhorar o "sistema" por meio de paliativos sociais, como o esforço de dar forças ao Estado a fim de que este promova a "cidadania" para os pobres, por meio de Trabalho, Dinheiro, Mercadorias, em resumo, tendo como perspectiva a sociedade do Desenvolvimento e Crescimento. Isto significa azeitar a arquitetura social a fim de garantir os valores mais caros ao sistema, ou seja, manter o capitalismo controlado por meio de um ordenamento que leve em conta uma certa igualdade, um controle ambiental e uma falsa certeza de que tudo será devidamente projetado em favor da sociedade das igualdades. Assim, as mercadorias são de toda ordem, até mesmo recursos e atendimento assistencial.

Os valores da imanência estão enraizados a tal ponto que os opositores não percebem que a tautologia construída em torno do Trabalho e das Mercadorias apenas fortalece um sistema que está prestes a desmoronar.

Mesmo que o sistema desmorone, os valores ultrapassarão as fronteiras do tempo histórico e em forma de possibilidade entrarão em diálogo, em conflito, em contradição com os sistemas que serão construídos. As hipóteses se lançarão novamente para o futuro.

É dessa forma que não se pode pensar em um sistema futuro, seja ele qual for, apenas como uma não-identidade do passado, recusando-se a olhar para as hipóteses anteriores. O sistema, ou os sistemas futuros, passará por aquilo que hoje existe. Haverá uma superação e não simplesmente uma negação. Numa construção dialética, a força do processo será sempre ambígua e reveladora, de tal forma que tudo está por ser feito e, ao mesmo tempo, tudo é determinado pela força das contradições e das relações das hipóteses.

Os movimentos populares

No entanto, ainda nos parece difícil empreender ou inserir um debate sobre o fim da sociedade do Trabalho, especialmente no ambiente dos chamados movimentos populares organizados, em um contexto de países e coletividades periféricas, do ponto de vista do centro das decisões da globalidade do capitalismo. Essa dificuldade é inerente ao processo que ainda se vê engajado na crítica do sistema capitalista, contudo, tendo em vista a própria imanência da sociedade do Trabalho e das Mercadorias. Dessa forma, é compreensível que as organizações de inspiração marxista ou, simplesmente de oposição ao sistema, ainda tenham resistência em compreender a necessidade de superar a sociedade da abstração sistêmica determinada pelo Trabalho e Mercadoria.

Ao ver o sistema a partir da ótica periférica, os movimentos, ao mesmo tempo querem a mudança mas não vislumbram-na de forma clara, também em virtude da necessidade de auto-afirmação em relação à sua própria condição social, política e econômica.

Constrói-se no seio desses movimentos, toda ordem de preconceitos, principalmente contra os defensores do fim desse modelo que morre a cada dia. Ora, sem que percebam, são tragados pela imanência do próprio sistema. Seu autoritarismo se confunde com sua boa-vontade. São membros de uma confraria que quer mudar e salvar o mundo. Como bons samaritanos, estão sempre alerta, prontos para lutar pela causa dos pobres e desvalidos.

Todo sistema em seu interior percebe conflitos. As partes embatem-se continuamente. uma parte das partes não entende o sistema. Outras partes querem a hegemonia do sistema. Poucas partes conseguem conceber o que de fato é o sistema. Dentre essas partes, algumas, ao conhecerem o sistema, fazem-no com o propósito de utilizá-lo conforme os seus interesses. E há os que ainda se tornam antagonistas, querem que alguma parte do sistema sobreviva, exatamente aquela na qual acreditam. Todas essas partes, muitas ou poucas, digladiam-se constantemente, mas não são capazes de furar o sistema. Entendem que há algo de metafísico nele que deve ser preservado. De certa forma, crêem que alguns valores são trazidos de outro lugar, de um lugar (tempo e espaço) que guarda verdades ontológicas e que foram subvertidas pelos oportunistas (vide tópico anterior). Assim é que esses grupos se mantêm mobilizados, uns contra os outros, apenas com o intuito de fazer prevalecer suas determinações, que também acreditam serem metafísicas.

Mas há uma minúscula parte que enxerga o sistema e o entende como é e percebe que é preciso furá-lo e superá-lo. O fato é que essa parte também – e sempre – corre o risco de se tornar um balão de ensaio ou, pior que tudo, tornar-se um farol para cegos e mais: um punhado de autoritários e esquizofrênicos.

Como Nietzsche observava, quando as coisas estão ruins na sociedade, a filosofia se torna necessária. E é com a filosofia que é possível furar o sistema. Na verdade é preciso frisar que não só com a filosofia, mas ela é um poderoso instrumento para a compreensão do sistema.

Mesmo com todos os instrumentos de análise crítica a favor dessa minúscula parte, para furar o sistema, ainda será preciso compreender que nada se faz sem liberdade. A liberdade é o caminho para a verdade, exatamente com a perspectiva de que pode haver alguma verdade. É possível que ela não esteja em lugar algum, talvez nem mesmo no fim do caminho2.

Os opositores e mobilizadores das massas acreditam em Platão. Talvez a sua imensa maioria sequer tenha ouvido falar de Platão. É provável que tenham muito boa-vontade para "transformar", de forma "radical’, o mundo em que vivem. Não admitem a realidade, ou, aliás, admitem-na para mostrá-la aos outros, a fim de que suas teses se configurem como mantenedoras de um caminho que deve ser, forçosamente, seguido pelos platônicos. A realidade, para os platônicos, como dizia Popper2, não passa de suspeição, tudo é corrupção, tudo é passível de mudança, tudo precisa mudar para encontrar o reino da verdade.

Há algo no fim que deve ser realizado. Por isso, os movimentos com essa inspiração não são livres. Estão presos ao começo e ao fim. Há uma ontologia que os persegue cegamente, transformam-se em perseguidores intransigentes da verdade. Esquecem que a verdade está em tudo e em nada, ao mesmo tempo, mas ela só deve ser vivida tendo como fundamento a liberdade, pois a verdade só existe fundada na LIBERDADE.

Tudo isso tido acima não significa que não haja a necessidade de mudança. A mudança, para os platônicos, deve ser vista com suspeita, ela deve, inexoravelmente, caminhar para o que a verdade do mundo da idéias determina.

É verdade que há um mal-estar presente na sociedade. Aliás, sempre houve esse mal-estar, a ponto de todos se sentirem profundamente incomodados com o que existe. Os fatos que se apresentam ao homem são dados, mas as relações sociais na atualidade são marcadas pela instalação da sociedade das mercadorias.

O mal-estar também deve ser compreendido a partir da busca dos paradigmas dessa sociedade capitalista e apontá-los em sua determinação equívoca.

As contradições e os esquizofrênicos

Em momentos de transição, todos se sentem incomodados. Há um mal-estar profundo que acomete a todos. Nesse sentido, sintomas são observados e experimentados. A crise se instala. Movidos pela idéia platônica da realização das verdades, as esquerdas se põem em movimento, com o objetivo de retorcer a ferros o capitalismo. Pouco resta a ser feito? Não sabemos. Há temas que devem ser postos na mesa das necessidades? Sim. Há campo para a mobilização social? Talvez. O meio-ambiente está ameaçado. O capitalismo industrial de exploração destruiu quase todo o planeta. Os ecologistas, parte considerável deles, se vêm às turras com a preservação e os modelos capitalistas de inspiração light, tentando manter a natureza e a estrutura capitalista de sobrevivência social. Muitos querem repercutir o caos que se apresenta.

Os esquizofrênicos sociais, os mecânicos de manutenção da sociedade, os projetistas, os planejadores, os controladores, estão com medo. Muitos têm saudades da bi-polarização do mundo, quando todos tinham, ao menos, uma referência para combater a outra. Hoje não se encontram espaços sociais para discutir a superação dessa sociedade.

Quanto mais se aproximam as contradições, mais se explicitam os paradoxos, mais perplexos todos ficam, em torno da fogueira, imaginando um futuro que não existe, projetando no futuro algo do passado que pode sobreviver. É certo que haverá coisas que deverão sobreviver. Haverá a construção de novas hipóteses que levarão em conta o cabedal do passado. Mas o pavor também nos toma e as incertezas são tamanhas que tudo parece girar, sem um centro, sem um ponto de referência.

O mais incrível é a capacidade que o capitalismo teve em submeter a humanidade, em tão pouco tempo, a uma determinação imanente que se tornou uma tautologia absurda e inconseqüente. Se é fruto de minorias; se é conseqüência natural do processo evolutivo, como queriam Hegel e Marx, além de Darwin; se é o resultado da submissão das massas; se foi uma realização das mentes perversas; se foi um constrangimento inexorável; se foi uma falha originada pela psicose humana ou se foi a boa-vontade dos arquitetos sociais, talvez não importa. É possível que todas essas causas sejam verdadeiras. Provavelmente haverá outras e tantas que não seremos capazes de identificar.

A caminho do fim

O fim está próximo? De que fim podemos falar? Dizemos do fim de um sistema. O sistema determinado pela abstração. O que podemos denominar uma abstração-sistêmica. O sistema que impõe uma escravidão planetária. A história pode nos mostrar que os sistemas se transformaram, mudaram, expiraram. Outros sistemas se moldaram e tornaram-se, eles mesmos, em fator de superação. É possível, que no sistema capitalista atual, ainda convivam elementos das relações pré-capitalistas, relações estas encarnadas pelo sistema de produção manufatureira. Ainda há bolsões feudais que convivem com relações pós-industriais. Nos países da periferia do sistema, esses elementos são mais visíveis e motivo de riso por parte dos chamados países desenvolvidos.

Em todos os lugares, talvez não seja possível viver o sistema em sua pureza. O capitalismo puro, também em si mesmo, se transforma. Relações se dependência se verificam em todos os níveis e graus. O mundo é um grande mosaico. Contudo, parece haver em todos os quadrantes, uma abstração que permanece sobre a cabeça de todos. Uma nuvem que paira soberana e que dita a conformidade da vida e do cotidiano, a ponto de submeter a todos ao modelo das relações contemporâneas.

O fim nos lança para o que podemos imaginar como o NADA. Assim, é melhor manter o que se tem, mesmo em um sistema obscuro e explorador que o NADA. Com a proximidade do FIM, o NADA parece ser um estigma que persegue a todos. O pavor diante do FIM é imaginar que não será possível nem mesmo manter o mínimo do que se tem.

O sistema vive nas pessoas, elas se submetem a ele de tal modo, que suas vidas perdem sentido. Em qualquer momento da história, os sistemas se tornam coercitivos. Por um lado parece ser normal que isso ocorra. Nos parece ser o conflito infindável entre o coletivo e o indivíduo, entre o ideal e real. Em muitos casos, o sistema se arvora a determinar, até de forma desumana, a existência humana. O sistema se converte em síntese. A síntese do começo e a síntese do fim. É a síntese que permanece insólita, incólume, como uma esfinge a nos observar e a conduzir o cotidiano.

Aqui, o FIM pode representar a extinção de uma SÍNTESE.

Esse sistema não pode durar muito tempo. Nada dura uma eternidade. Nada pode ser uma eternidade. Mesmo que o sistema produtivo com base no trabalho e nas mercadorias fosse perfeito, não duraria indefinidamente. Em algum momento, os processos internos desenvolvidos pelas hipóteses criadas, pressionariam o sistema e os seus grandes e aparentemente duradouros paradigmas, gerando conflitos que se expressam em sua contradições.

Diferentemente da natureza, a mente humana comporta uma gama de possibilidades que se configuram em construções infindas. Como dito anteriormente, as hipóteses nos lançam para o futuro, projetando-nos para frente. Essa projeção nos coloca diante de nossas próprias relações.

No entanto, temos sempre a idéia de que o sistema, como o fruto da síntese coletiva, não muda, ou melhor, não deveria mudar. A mudança nos parece algo complicado e doloroso. Os sistemas são concebidos por meio de uma relação intensa entre coletivo e indivíduos, de tal forma que as tensões se conflagram constantemente. A imanência dá aos indivíduos uma certa impotência diante da magnitude do que está para ser transformado.

Em outras palavras, talvez seja possível conceber uma mudança por si, como uma natureza estrutural das coisas, como todas as coisas assim são. É possível, por outro lado, que a mudança seja uma provocação, uma determinação dos indivíduos. Mais que isto, a mudança do sistema pode advir pela habilitação platônica que se instala na realidade e procura transformá-la conforme os seus ditames.

Para muitos, a mudança significa, por si, o FIM.

Sempre haverá, no entanto, um conflito velado entre os que defendem a mudança do sistema por meio de uma intervenção maciça dos indivíduos que se convertem em sujeitos, diante do mundo (sistema) que deve ser mudado. Há outros que compreendem a mudança do sistema como algo inevitável, fruto da histórica luta entre contrários e contradições, que se manifestam no bojo do processo que cria as antíteses, vislumbrando o fim como uma trajetória forçosamente delineada, realizando uma determinação histórica esperada.

Também se encontram os que observam o andar da carruagem e percebem que mesmo com a passividade dos indivíduos, o mundo caminha e muda, e por conseguinte, os sistemas mudam inexoravelmente. De fato, há uma mudança que se verifica. Mas os indivíduos nela se encontram e nela atuam constantemente.

Mas a mudança pode não significar que o fim esteja próximo. Por outro lado, o fim sempre acontece e sempre é o que se verifica na história. O fim que se torna um determinado começo e que determina o caminho para o fim.

Também não parece possível que o homem apenas seja um ente passivo na natureza. Ele é um ser que age em virtude da construção de suas próprias hipóteses, já em um processo de distanciamento do que podemos chamar de experiência originaria. Visto do ponto em que se encontra o homem, agora, ele foi capaz de elaborar e acumular um volume tal de hipóteses que sempre o lançam para o futuro, e que nos parece difícil elaborar um caminho de volta às chamadas origens até consideradas ingênuas.

O mundo criado pelo homem é o mundo de sua consciência e também mesclado pelo mundo em que se encontra. Ao dar um valor excessivo à sua razão, como mentora do mundo exterior, e ao criar o primado da consciência do sujeito do conhecimento distante do mundo e da natureza, esse homem encontra dificuldades em promover um diálogo entre o movimento e a sua consciência, entre suas hipóteses e as fragmentações determinadas pelo tempo, pela mutabilidade.

O fim esperado pelo homem pode ser a ânsia de vislumbrar uma síntese estática, perfeita, ideal, iluminada. O fim pode ser, por outra forma, uma tentativa honesta de incluir a consciência no mundo e não fazê-la um primado para a chamada transformação com o princípio da razão. Os ditames sociais não são esclarecidos exclusivamente pela noção da razão e das luzes. É preciso compreender o homem em um emaranhado de relações e relatividades.

O fim dos sistemas é um processo que, de uma forma ou de outra, será um processo que irromperá na história, como irromperam as mudanças, apesar da tentativa de compilar os movimentos e projetar as sociedades conforme modelos ideais.

Há um fim que espera a todos. Mas os fins estarão conforme as relações determinadas pelos indivíduos e pelas coletividades.

Contudo, é possível que o sistema vigente, o sistema que determinou a dependência de muitos povos e de milhões de pessoas esteja a caminho do fim. Em que medida se dará o fim? O problema de muitos é como acelerar a chegada do fim. Para outros, trata-se de antever o que virá após o FIM. Assim como as religiões tentam explicar a pós-morte, cabe aos futuristas determinar o que será um outro modelo social após o FIM do capitalismo.

Apesar de todas as considerações anteriores, o fato é que há uma imensa vontade de fazer com que o Capitalismo seja superado. A superação desse sistema não pode deixar de levar em conta a superação do trabalho e das mercadorias, em sua determinação das relações sociais.

Com o sistema claudicante, tendo um dos pés em franco processo de amputação clara, o outro extremo não poderá ser mantido por muito tempo. O FIM virá. O pé amputado é o do TRABALHO EM SUA ABSTRAÇÃO, e o outro pé são AS MERCADORIAS que entrarão em sua própria contradição, no momento em que não houver como defini-las como tal.

O fim do capitalismo pode estar próximo ou até mesmo a perder de vista. Mas há condições para sua superação, como antes não eram possíveis. A passos largos, observa-se que os paradoxos do sistema se colocam cada vez mais à vista. O chamado neo-liberalismo apresenta as claudicantes determinações do capitalismo. Em meio à turbulência social, que varre os continentes em busca de desempregados, em busca de mercados, em torno de ESTADOS desesperados que anseiam por investimentos, num jogo de cartas marcadas, o valor dado às mercadorias, simplesmente dado pelo incremento da tecnologia, numa insistência platônica de manter o sistema, revela, por mais incompreensível que possa parecer, o começo do fim, o DESESPERO DO FIM.

Talvez não seja o caso de se discutir com mais exaustão se o sistema tem consciência de que o fim se encaminha ou se apenas ele (o sistema) caminha com a ingenuidade de que está cumprindo com o seu destino, acreditando cumprir com o vaticínio do progresso a todo custo.

Não se teme pelo que não se conhece. Os que se agarram ao sistema ou à sua imanência e se desesperam com o FIM ou com o que pode haver ale do fim, temem, em verdade, o que já experimentaram e o que conhecem, vêem e sentem. Por isso submetem a crítica, sempre, às mesmas perguntas infantis: como se dará isto; como será aquilo; o que fazer; como fazer; o que será.

Como bons fariseus, querem respostas e os que sabem que não podem dá-las, são desqualificados e amedrontados pela incapacidade de se submeterem à realidade e à proposta de uma construção da história.

O sistema de abstração planetário, determinado pela MÁQUINA-TRABALHO, está à deriva, mas muitos e por muito tempo ainda permanecerão a bordo com o firme propósito de salvarem o que resta ou o que imaginam ser aquilo que vale a pena ser salvo.

REFERÊNCIAS

1 - KURZ, Robert. A honra perdida do trabalho. Grupo Krisis, Alemanha, 1991, (www.krisis.org).

2 - HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência do fundamento. In Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1973.

3 – POPPER, Karl. R. A sociedade aberta e seus inimigos. In Clássicos Liberais, Trad. Roberto Fendt Jr., Vol. I e II.

FREIDRICH NIETZSCHE. Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. In Os Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1996.

FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago, sd, pp. 84-85, 100, 116, 145.

GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. São Paulo: EDUSP, Departamento de Geografia, Labur, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2000.

HORKHEIMER M. & ADORNO T.W. O Conceito de Esclarecimento. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1997, pp. 21, 24, 31, 32, 37, 39, 47.

Atanásio Mykonio Filósofo

Agosto de 2003 Mogi das Cruzes - Brasil