CARTA AOS DEFENSORES DA MÁQUINA-TRABALHO

CARTA AOS DEFENSORES DA MÁQUINA-TRABALHO

Toda carta terá, por certo, um destinatário. Ou, por vezes, vários destinatários. Quando muito, destina-se a uma coletividade. As cartas são a expressão de anseios, desejos e mensagens transmitidas por quem espera, na distância, preencher vazios e ausências. Uma carta pode trazer repreensões e desalentos, rompimentos ou queixas que foram suprimidas ao longo do tempo. Uma carta se apresenta no vácuo de uma presença que se quer presente no instante de sua criação. A quem endereçar uma carta que pode ser interpretada como afronta? Que amigo gostaria de receber palavras que soam opostas à sua conduta? Somos compelidos por um contexto a dizer coisas que podem ferir ou estimular pessoas. Pessoas que não vemos o rosto, não tocamos suas feições e que não nos trazem o calor de sua presença. Em qualquer canto haverá pessoas dispostas a ler esta carta e muitas, na sua maioria, espero, irão rasgá-la como prova de uma pretensa insanidade: a insanidade de quem não acredita na redenção humana através do Trabalho.

Espero não ferir suscetibilidades nem promover uma avalancha de protestos e queimas de consciência, pois há muito, outros, em outros lugares, têm levantado suas vozes contra a sociedade da Máquina-Trabalho e têm demonstrado, com duras críticas, que esta sociedade, da qual fazemos parte, está moribunda e caminha para uma nova perspectiva. Há os que são pessimistas ao extremo, e pintam cenários horrorosos, em que o mundo desabará sobre si mesmo. Há outros que percebem as mudanças e vêem na transição chances e oportunidades ímpares para a realização da existência construindo novas formas de relação a partir do ponto de mutação que ora todos experimentamos.

Mas será que tudo isso é suficiente para me por a escrever uma carta longa e, provavelmente, enfadonha, que trata de um assunto tão controverso e que diz respeito às vidas de cada um de nós outros? Será possível atingir o coração das pessoas, das autoridades, dos capitalistas, das esquerdas, para um novo horizonte? Uma carta pode abrir caminhos na mente e na sensibilidade humana? Será tudo isso uma estúpida pretensão de quem acredita que o homem é muito mais do que apenas o seu Trabalho? Uma carta trará esperança, poderá despertar para um mundo de realidades das quais estamos, por ora, embotados, convencidos que fomos durante duas centenas e meia de anos, anos tão dolorosos e sofridos para todos. Anos em que a fadiga humana, a degeneração em favor do Trabalho nos obrigou a sairmos de nós mesmos e construirmos abstrações tão poderosas e eficazes que nelas nos vemos tão felizes e realizados e cuja identidade está intrinsecamente atada.

Quantas cartas deverão ser escritas e quantas palavras serão jogadas nas latas dos lixos urbanos até que a humanidade se aperceba do buraco em que se meteu? O título desta carta pode ser sugestivo. Trato da ordem estabelecida pela sociedade industrial, burguesa e que se espalhou rapidamente por todo o planeta. O Trabalho foi necessário para que as máquinas ganhassem o mundo e com elas a sociedade se transformou em uma poderosa, azeitada e bem eficiente Máquina. Esta Máquina não pode prescindir do Trabalho, ambos são faces de uma mesma moeda, como em uma relação, sua existência não é possível isoladamente. É preciso que haja a Máquina social para que haja o Trabalho coercitivo.

A Máquina-Trabalho é o arranjo bem cuidado de uma sociedade que se viu manietada por sistemas tais que não sabe como reagir e eles mesmos, está embotada de verdades enclausuradas no sistema da Máquina-Trabalho, de tal forma, que nada consegue deter a idéia de que ambos, Máquina social e Trabalho coercitivo, são o fim, o além e o quem do homem em sua realização existencial.

Por isso, tive o cuidado de dar a esta carta o cunho que engloba as duas faces de uma sociedade que ainda acredita no poder realizador da Máquina, verdade esta que se alastrou por toda e qualquer relação social, atingindo o poder, as organizações sociais, os Estados, as religiões, os sistemas de toda ordem. A Máquina é o desejo de uma sociedade que pode controlar e ser controlada por um mecanismo sofisticado, a ponto de se tornar a síntese acabada que pode preceder o movimento humano, um motor, uma idéia que pode garantir o motilidade da vida que é engendrada na vasta e complexa rede de relações abstratas de valor e de troca.

A Máquina nos oferece a certeza de que estamos protegidos, protegidos por nossa própria inteligência. Com ela, a sociedade se arranja, como em uma grande e universal colméia, um gigantesco formigueiro humano, mantido pela ordem estabelecida pela Máquina, como um ser presente e invisível. A Máquina está para nós "a priori" como a idéia dos dons divinos que nos submetem ao nosso próprio destino.

Como podemos ser a favor do término do Trabalho? Como, em sã consciência, podemos nos colocar contra a forma mais acabada que a sociedade encontrou para realizar o homem moderno? É possível que tal proposição seja tachada de herética. Provavelmente os que pregam o fim do Trabalho como forma de libertação do homem serão os novos hereges da sociedade pós-moderna. O Trabalho tornou-se uma instituição acima das realidades humanas, foi promovido à categoria essencial da existência, foi erigido ao mais alto púlpito nos discursos humanitários, sociais e políticos. Hoje, todos devemos ser a favor do Trabalho, devemos render reverências ao ideal supremo da humanidade, mesmo que este ideal nos converta em vampiros sociais, mesmo que este paradigma nos coloque diante da mais crua e nítida contradição da vida e de sua verdadeira realização em toda a história humana.

De que forma poderei convencer meus amigos de que o Trabalho não nos elevará à categoria de pessoas portadoras de dignidade? Como é possível demonstrar a ineficácia do Trabalho em uma sociedade que erigiu-o de forma sacrílega ao altar mor do cotidiano humano? Quais seriam os argumentos contra o Trabalho sem que estes não trouxessem, em si mesmos, alguma dose de cinismo ou, talvez, carregados de insatisfação, de ira desejosa de por fim a tudo que diz respeito ao Trabalho? Não me parece que estejamos à beira de uma nova era de hippies cabeludos, tresloucados, preguiçosos, à procura de novas paragens e pastagens, em busca da construção de comunidades alternativas, se bem que o sonho da criação de comunidades alternativas sempre permeou o imaginário de grupos sociais e étnicos, de toda natureza. Não, não é o caso, pelo menos por enquanto.

Mas não deixa de ser significativo o fato de haver um desafio quase intransponível quando tratamos do tema a respeito do fim do Trabalho - e não se trata de um fim por causa dos recursos tecnológicos e sim do fim do Trabalho como forma de coerção social das mais perversas - desafio este que versa sobre a superação da sociedade do Trabalho, mesmo agora em que a ordem é trabalhar e trabalhar mais. A ordem suprema é encontrar Trabalho para todos, principalmente em países sequiosos de se tornarem membros da comunidade dos nababos globais.

Uma sociedade que exige soluções e pede milagres. Eis no que nos tornamos: um amontoado de reivindicantes sociais. E quando nos levantamos contra a Máquina-Trabalho imediatamente surgem os degoladores e os burocratas para apontar o dedo e nos acusar. Pedirão soluções, exigirão caminhos, perguntarão pelo Como e o Como não será dado em uma bandeja de porcelana, os hipócritas estarão a postos para nos dizer e nos lembrar de que não é possível superar a sociedade da Máquina-Trabalho.

O que temos a fazer é, antes de tudo, mostrar as armadilhas do tempo moderno, apresentar a nós mesmos a teia construída por dois séculos e meio de uma idéia que correu a face da Terra e que, paradoxalmente, nos libertou das indigências e também nos colocou em outras, cruéis e perversas indigências humanas e sociais, e que foi capaz de emaranhar a todos, numa grande corrente insana de estupidez e ignorância. Somos, ao mesmo tempo, vítimas e algozes de nossa própria armadilha, arquitetada e nutrida com todo o carinho da nossa existência: a Máquina-Trabalho.

É bem verdade que ainda há milhões empregados, que saem pela manhã para ganhar o pão de cada dia, que percorrem distâncias imensas para chegar ao Trabalho e lá trabalhar, com gente estranha, de histórias desconhecidas e não compartilhadas, obrigatoriamente, todos devem tolerar-se para o bem do Trabalho. Não há escolha possível, no Trabalho é preciso apenas aceitar o que nos dão, como migalhas necessárias para a nossa dignidade. O número de mulheres e homens que trabalham ainda é maior que o dos desempregados, mas em muitos países esta conta começa a se reverter.

Ainda estamos em uma sociedade do Trabalho. Invisivelmente, o Trabalho se acaba, lentamente ele deixa de existir, mas persiste no intelecto individual e coletivo. A humanidade está desesperada atrás do Trabalho. E mesmo assim, permanece cega às necessidades das pessoas, não se importa, contanto que haja Trabalho para todos, mesmo que isto signifique a desintegração da identidade, mesmo que se torne um processo de escravos que escravizam escravos, mesmo assim, ainda parece necessário que o Trabalho regule as nossas vidas, por qualquer motivo. Mas chegará o tempo em que a evolução tecnológica alcançará níveis astronômicos, sua velocidade será geométrica, quiçá, exponencial, e aí assistiremos ao mais destruidor dos fins, o fim do Trabalho. E quando o fim chegar de maneira definitiva, muitos de nós terão morrido, outros terão se matado de rancor, ódio, saudosismo ou inconformismo, mas muitos ainda estarão sobre a face da Terra. Terão de viver com uma nova realidade.

As novas gerações, de certa forma, já se habituam às novas tendências.

Utilizam o tempo para outras atividades. Outras atividades culturais de grande monta são resgatadas. Os adolescentes e jovens já vivem em um mundo quase virtual, acostumaram-se com a tecnologia e a sociedade da informação, pena que ainda subestimem o papel da pessoa humana, substituem as relações humanas pelas máquinas, um engodo do qual, cedo ou tarde, haverá respostas.

O mais interessante é que esta realidade se torna cada vez mais real. Cada vez mais, os governantes, os capitalistas, os sindicalistas e os partidos de toda natureza, sentem-se desconfortados quando prometem Trabalho. Há em seus olhares um distanciamento, a necessidade de auto-convencimento, a busca de uma certeza que não mais se assemelha à verdade marxiana de que o Homem é o seu Trabalho. Tentam encontrar um caminho para resgatar o modelo que os fez, tentam reanimar um moribundo, contando histórias de natal, promovendo campanhas em favor da "empregabilidade" com vistas a garantir melhores condições sociais para os mais pobres, o que não é verdade. Todos dizem que é urgente dar Trabalho às pessoas, para que todos vivam felizes, sufocados, explorados, mas felizes.

A cidadania está com os capitalistas. A culpa é deles! Afinal, eles nos deram o Trabalho e agora querem nos tirar o Trabalho, substituindo-nos por máquinas. Isto é intolerável! Agora fazemos campanhas em favor do Trabalho, queremos o nosso Trabalho de volta. Os sindicatos perderam a força. Os partidos trabalhistas perderam a força. Todos estão na forca. Como bons escravos, acreditamos na força do Trabalho, queremos nos enforcar com a forca do Trabalho, mas não importa, pois agora temos um guardião da cidadania, o Estado.

Caberá a esta entidade, quase espiritual, garantir a todos o caminho seguro para a dignidade humana, o Estado nos dará o Trabalho de que tanto necessitamos. Somos fiéis aos dogmas das esquerdas de que o Estado nos salvará, dando-nos Trabalho. Quem sabe uma boa picareta para quebrar estradas e depois refazê-las com o dinheiro público. Alguém precisa fazer o Trabalho sujo. Muitos acreditam que sempre haverá espaço para o Trabalho. Eis aí a forma cínica de conduzir os debates.

Afinal, precisaremos sempre de algum trabalhador, mesmo que este sirva apenas para apertar botões, ou engraxar sapatos, ou guardar barracas na praia, haverá o Trabalho. E se haverá o Trabalho, então estamos salvos, o Trabalho está salvo, a nossa conduta moral em conseguir melhores condições para o Trabalho persistirá a qualquer custo, pois haverá sempre um explorado por quem lutar e os sinos sempre por ele dobrarão.

Assim poderemos permanecer presos ao sistema. Assim, teremos um "ideal" por que lutar, deitaremos em nossos leitos e dormiremos em paz, sabedores de que cumprimos com a nossa obrigação de lutar por "melhores condições" e mais: sempre estaremos alertas para denunciar e esbravejar contra os corruptos e os exploradores. E se bem nos entendemos nesta neurose coletiva, os capitalistas também dormirão em paz porque ainda haverá quem lute para ser explorado, pois dessa forma todos manteremos bem lubrificada a Máquina-Trabalho. Milhões esperam, de alguma forma, manterem-se presos ao sistema do Trabalho.

Com a sociedade industrial, o Trabalho tornou-se uma máquina, a Máquina-Trabalho que tritura as vísceras humanas e que despeja a maior das ideologias sobre todos nós: a certeza de que o paraíso se constrói pelo Trabalho. A Máquina-Trabalho está mais viva do que nunca. Viva na memória, na alma das sociedades, ficou incrustada na pele dos povos. Todos queremos e precisamos do Trabalho, é como se fosse o nosso passaporte para o céu. Deus só ama quem pode trabalhar.

Com tanto esforço e tanta dedicação, com tanto fanatismo e superstição em torno da Máquina-de-moer-gente-para-o-Trabalho, os homens e as mulheres não souberam fazer outra coisa de suas vidas que se entregar e esperar pelo Trabalho, desde o nascimento até a morte. Toda a conduta humana está enraizada no modelo das relações sociais determinadas pelo Trabalho, da comida ao sexo, tudo gira em torno da satisfação ou compensação sobre o Trabalho.

Nossa cultura é a cultura do Trabalho, não podemos parar, não podemos nos ausentar, não podemos nos entrincheirar noutras paragens. Certas atividades humanas são concedidas como forma de compensação, a arte, o divertimento, os eventos culturais e folclóricos, são momentos de distração e "relaxamento", o que de fato importa é o Trabalho. Seremos julgados e salvos pelo Trabalho que fizemos e praticamos. Se pudermos proporcionar Trabalho a outros tantos infelizes, então o paraíso está já garantido, caso contrário, viveremos com a angústia da "omissão".

Nosso relógio, as horas, os tempos e a distância são marcados pelo Trabalho.

Nossa essência é determinada pelo Trabalho: ?O que você é? Sou torneiro? Eis a resposta cabal e decisiva, que não pode deixar qualquer sombra de dúvida. Nada mais nos cabe neste mundo de tragédias, devemos ser o nosso Trabalho, apenas isto poderá nos identificar como pessoas humanas.

Nossas escolas estão direcionadas para o Trabalho. Ricos, pobres, miseráveis, gente da periferia, gente das classes médias, todos querem disciplinas e disciplina, que garantam o condicionamento necessário para seguir adiante com o Trabalho. Precisamos aprender para trabalhar. Ricos e pobres se vêem vestidos e protegidos com o mesmo manto, o manto do Trabalho, mesmo que este se torne uma miragem no futuro, todos quererão alcançá-lo, somente desta forma continuaremos a sustentar a sociedade do Mérito, a Meritocracia. São templos que ensinam como o Trabalho é a essência do homem. São lugares em que o mundo pára à espera de um saber funcional que irá servir para ser utilizado, de forma utilitária, nas rodas da vida, da vida do mundo do Trabalho. Nossas escolas são como cemitérios fixos, cujos defuntos são uniformizados, carimbados e devidamente selecionados para o mundo que está com seus dias contados.

Todos escolhemos a escola como promotora da cidadania. A cidadania do Trabalho escravo, do Trabalho insano, do Trabalho abstrato, forma acabada da coerção social perversa e desumana. Escolhemos a escola como lugar privilegiado de um saber tresloucado, fora do eixo da própria humanidade, fora do que é próprio do humano. Elegemos a escola como espaço de moer gente e quebrar mentalidades livres, pois o que importa na escola é a certeza de que sairemos limpos, obedientes, honestos e prontos para o Trabalho.

Essa ideologia permeia a sociedade até os seus poros e as maiores vitimas são os pobres e miseráveis que não encontram outra alternativa para a sua "cidadania" que a escola e o Trabalho. Dizem-lhes que sem a escola e sem o Trabalho, serão criminosos, serão viciados, doentes, ignorantes, não haverá qualquer possibilidade a ele senão a de se tornarem "escravos cidadãos" do mundo da Máquina-Trabalho. Nossos jovens precisam do Trabalho! Por trás desta afirmação escondem-se as piores perversidades e as maiores discriminações sociais. Precisamos dar Trabalho e Educação aos jovens, caso contrário, eles não terão outra alternativa que não as drogas.

Mentira! Somos enganados pela idéia de que sem o Trabalho o homem não é nada. Não é verdade que um jovem sem Trabalho deva, necessariamente, encontrar o caminho da violência e das drogas. E a Educação é a base sustentadora desta ideologia macabra, de vampiros sociais. Também não é verdade que a Educação é garantia para que um jovem deixe a marginalidade. Não é a Educação nem o Trabalho que nos darão uma sociedade mais justa. Não são estes valores que devem ser colocados na precedência de outros. Pois em grupos sociais que não precisam do Trabalho nem da Educação formal não se verificam sinais de exclusão, não se observam violências e desvios como bem querem nos mostrar os que defendem a sociedade da Máquina-Trabalho.

E o Trabalho é, em quaisquer das circunstâncias - mantido sob a pressão do círculo vicioso da abstração do Valor e da Mercadoria - como uma tortura legalizada e institucionalizada. Todos se sentem oprimidos no Trabalho, mas não conseguem se ver fora desse sistema doentio. Todos se sentem explorados, mas não sabem de sua existência fora do Trabalho. Todos são humilhados, mas permanecem em seus postos. Todos sofrem agruras e doses elevadas de manipulação, mas continuam firmes em nome de sua realização existencial.

Uma loucura jamais vista pela história do homem, em qualquer momento e em qualquer realidade. A modernidade nos transformou em robôs submissos, honestos, bem comportados e obedientes. Os desobedientes são tratados como heréticos, devem morrer nas fornalhas ardentes da exclusão. Mas os que se rebelam contra a exploração do Trabalho, mas ainda o mantêm como forma de realização de suas identidades, são tão perversos e neuróticos quanto os que se deixam dominar por completo pela Máquina-Trabalho.

E a pergunta permanece e rola como as pedras que rolam para o nada: Afinal, o que faremos sem o Trabalho? Até mesmo intelectuais não conseguem ver sua existência longe da Máquina-Trabalho, e muitos deles detestam sequer a idéia Trabalho, têm ojeriza, urticárias, têm pesadelos horríveis quando são submetidos à Máquina-Trabalho, mas insistem em dizer que o Trabalho salva o homem.

Da mesma forma, os artistas se sentem trabalhadores culturais, membros de uma comunidade diferenciada, pelo menos, contudo, não se sentem autorizados a desqualificar o Trabalho e desautorizá-lo por completo, de alguma forma, precisarão de babás, motoristas, jardineiros, modistas, fofoqueiros.

Somos os cínicos modernos. Afinal, o que resta aos pobres é o Trabalho, simples e reles Trabalho, como condição social para a sua própria salvação, desde que não seja um Trabalho dado pelos Capitalistas e sim dado pelo Estado, controlado por nós, da Esquerda.

Não posso deixar de reconhecer que também sou uma vítima desse processo. Tenho pesadelos e dor de cabeça. Também sou um escravo proletário, que precisa do Trabalho e do valor de troca dado por ele para garantir o meu sustento. Ainda não sei o que fazer de mim ou das coisas que penso. Sou tão igual e simples como todos os que também acreditam na Máquina-Trabalho. Mas eu não acredito mais nessa sociedade. Isto não me faz melhor nem pior. Não me coloca em um púlpito iluminado, não me lança para uma realidade superior nem me faz alheio aos problemas e à realidade massacrante da Máquina-Trabalho. Sou mais um que se convenceu de que este modelo social não serve mais para mim e para todos nós. Mas, com certeza, ainda viverei as agruras desse modelo e pior, terei de enfrentar, juntamente com muitos mais, a dolorosa reação dos que acreditam piamente na Máquina-Trabalho.

Em um país tão frágil de elementos constitutivos, o Trabalho se tornou uma referência para a unificação de muitos em torno de algumas idéias que já andavam dispersas. A unidade brasileira parece ganhar força com o revigorar da sociedade do Trabalho. Estamos carentes de coisas, de utopias e mensagens de salvação. Necessitamos de um norte para a compreensão de nossas mazelas, ansiamos por um novo compromisso social, bradamos por novos pactos que nos coloquem em algum sistema capaz de nos dar a salvação e a segurança de que o homem sempre procurou. A síntese esperada e que, por algum motivo, se transfere para o futuro, sempre para o futuro, jamais no presente.

Estamos unidos em torno das heranças de uma máquina que moeu a humanidade por quase 270 anos. Somos vítimas de uma armadilha da qual não temos mais coragem de enfrentar e desarmar. Mesmo explorados pela Máquina-Trabalho, não nos vemos em condições de viver sem este liquidificador humano. Como bons e felizes escravos, precisamos continuar em torno da Máquina-Trabalho, uma vez que ela nos garante, ao menos, a própria exploração.

O que será de nós sem o Trabalho? O que será da nossa existência sem o Trabalho? Graças ao Trabalho, houve um enriquecimento progressivo de determinadas camadas sociais. O Trabalho gerou riquezas incomensuráveis e que hoje não necessitam mais da força do próprio Trabalho e, em suma, dos chamados trabalhadores-proletários.

A Máquina-Trabalho conseguiu atingir um grau de sofisticação nunca antes experimentado. Esta riqueza é um fato, um dado inegável que gera angústia com a pós-modernidade. Na era da sociedade das massas, ainda havia a esperança de que poderíamos reverter os estados miseráveis, proporcionando melhores condições de trabalho a camadas cada vez maiores das próprias massas.

Ilusão! Esta riqueza flutua como gás néon, iluminando as estrelas e os sonhos dos consumidores. Esta riqueza pode derrubar governantes, fazer as bolsas subirem e descerem sem qualquer escrúpulo, pode despejar na lata do lixo milhões à beira da indigência. Mas esta riqueza que flutua pelos ares da Terra não parece ter a pretensão de voltar ao chão seguro. O que parece é que ficará a flutuar por bons tempos até que a realidade nos impinja uma atitude mais condizente com a história.

O que farão os donos dessa riqueza? Em que paraíso fiscal poderão manter seus lucros indefinidamente? É certo que ainda há alguns bilhões de seres humanos a serem conquistados. Há mercados que ainda não foram totalmente explorados, há um consumo latente que espera a sua vez, mas nada disso parece que é capaz de sustentar que a Máquina-Trabalho não prescindirá de um dos seus pés: o Trabalho.

Os capitalistas têm vergonha com o que acumularam? Talvez não seja uma pergunta muito honesta a ser feita numa tal conjuntura global. Os efeitos da escassez consumista pode afetar seus cérebros, ainda mais se estamos diante de sérias ameaças ambientais, pois a Natureza não é capaz de resistir por tanto tempo, uma vez que boa parte do seu próprio capital está se extinguindo rapidamente.

Durante milênios fomos inteligentes o bastante para tirar da natureza os seus dividendos, mas com a era do COMO, chegamos à desfaçatez de arrancar a essência, deixando as migalhas para o nada ou para os nossos próprios pulmões devastados pela poluição e pela sujeira.

E nós, da esquerda, temos ainda a certeza de acreditar que o Trabalho seria a salvação da lavoura? Talvez não seja uma pergunta muito propícia para o momento, uma vez que conseguimos o poder. Nós que sempre estivemos ao lado do bem, agora nos vemos entrincheirados, às voltas com tamanha encrenca ideológica e ética, graças às opções e decisões equivocadas do passado.

Sem saber, muitas vezes, andamos de mãos dadas com o Estado predador e os capitalistas vampiros. Sem saber, comungamos da mesma mesa em torno de um mesmo ideal: O Trabalho. Em virtude disso, somos compelidos a nos aliarmos ao que pode haver de mais perverso, somente para mantermos a pose de bons homens que lutam em favor dos Trabalhadores e do Trabalho.

Distribuir riqueza não significa, necessariamente, distribuir Trabalho. A grande riqueza vista pelo mundo nada mais é que o fruto da exploração dos trabalhores pela Máquina-Trabalho. No entanto, não nos iludamos achando que as coisas poderiam ser melhores se esta Máquina-Trabalho fosse mais generosa, distribuindo desde os princípios da Revolução Industrial as benesses dos seus lucros. A Máquina-Trabalho gerou uma categoria humana infame: os miseráveis. O mundo não tinha conhecido tamanha miséria até o advento da sociedade da Máquina-Trabalho, com ela, as massas foram atiradas à própria sorte, sem qualquer escolha, decididamente feitas objeto de refugo, não-produtivo, não-rentável. As massas que não podiam "trabalhar" ou consumir eram e são deixadas nos lixões sociais, sequer têm direito a uma reciclagem.

O que fazer com os ricos e os pobres? A alienação de fato é um dado a ser constatado. Mas a distribuição das riquezas produzidas pela Máquina-Trabalho também não serviriam para libertar os homens e as mulheres da escravidão imposta pela Máquina-Trabalho. Os bens adquiridos não serviram para nos dar maior humanidade, deveriam, em tese, mas mergulharam populações em uma corrida desenfreada ao ouro. Fomos triturados por dois séculos e meio. Carne e ossos moídos em uma máquina que gerou riqueza estrondosa por todo o planeta.

Os pobres da terra foram enfiados nas fábricas, obrigados a deixarem suas terras e seus afazeres, a fim de promoverem, obrigatoriamente, a prosperidade do mundo capitalista e, posteriormente, dos mundos das esquerdas e oposições por todos os cantos do mundo. Os pobres foram destituídos de suas posses e infestaram as novas cidades para o bem das fábricas e da Máquina-Trabalho. Os pobres não sabem outra verdade que os possa redimir que não a do Trabalho. Sentem-se orgulhosos em trabalhar, em se oferecer em holocausto para a Máquina-Trabalho.

Nada mais confortante para um pobre que garantir a ele o seu sustento com o suor de sua própria fronte. Quanto suor gasto à toa! Quanta vida desperdiçada em nome do Trabalho! Os pobres e os miseráveis da terra estão pedindo por Trabalho. São esmagados, triturados, vilipendiados, arrancados de suas vestes, mas mesmo assim, querem o Trabalho e confiam nos salvadores para dar-lhes alguma forma de segurança. É preciso que os pobres tenham um canto para chorar suas dores e a Máquina-Trabalho se encarrega dessas doses em módicas prestações de inconsciência e sortilégios. Todos estão plenamente convencidos de que não há outra saída. Vejo pela vida tanta gente que se orgulha do que tem, que se orgulha de ter sujado as mãos e os pés, de ter feito parte da Máquina-Trabalho, com esmero e dedicação.

Quantos não saberiam encontrar outra justificativa para o que amealharam a não ser pela generosa e grandiosa santidade do Trabalho. Todas as dores e sofrimentos, todas as angústias e humilhações podem ser perdoadas e até esquecidas, afinal, aposentados, agora temos a casa na praia. Tudo vale a pena se a obediência não é pequena! Somos a escória humana que se vende pelo Trabalho. Um valor adequado para as nossas ambições humanas, valor que não vai além do nosso próprio nariz.

Ascendemos socialmente, achando que foi o Trabalho quem nos forneceu essa benesse e nos guardamos e nos trancamos como bons milionários, suspeitando de todos os pobres que também um dia, como nós, queriam ser felizes com o Trabalho. Em certa medida nos confortamos com a idéia, no entanto, é verdade que a sociedade do Trabalho criou desigualdades proporcionais. Ao mesmo tempo em que nivelou-nos por baixo, tornou-nos desiguais por cima.

Mas no princípio não era o valor das mercadorias nem a aquisição do bem abstrato de dinheiro nem, muito menos, o Trabalho como valor supremo das relações humanas. No princípio da nossa era industrial, era o Trabalho e o Trabalho era o elemento necessário para que a máquina produzisse. Sem o trabalho forçado de milhões não haveria a riqueza que hoje mendigamos as migalhas para sobreviver. Esse sistema criou um modelo espetacular: inventou as relações de dependência absoluta. A dependência absoluta foi responsável pela inserção, no cenário social, da MISÉRIA.

E hoje o modelo se reproduz como uma abstração que se nutre por si mesma, a sociedade da Máquina-Trabalho continua a moer consciências e corpos para a sua ventura. E acreditamos que somente o Trabalho poderá nos devolver a inocência perdida, como se ele fosse capaz de sustentar outra forma de sociedade diferente da Máquina-Trabalho. O Trabalho em qualquer sociedade contemporânea não tem outro sentido que não o de manter o sistema abstrato de mercadorias e valores, gerando mais miséria.

Não acredito que a Miséria é sinônimo de exclusão. Não percebo a exclusão, da forma como as esquerdas pregam. A exclusão é o não-estar presente no mundo das mercadorias. Os miseráveis estão, não são excluídos, são incluídos em um sistema macro, que denomino de Máquina-Trabalho. A exclusão diria respeito a qualquer grupo que não prescindisse mais do modelo atual e que pudesse criar suas próprias leis, manter-se autônomo e desenvolver-se sem qualquer mecanismo de dependência. Impossível! Somos todos pertencentes a um mesmo cosmo: a Máquina-Trabalho.

Nossos mais sinceros discursos se voltam contra a onda consumista. Acreditamos piamente que a diminuição do consumo a níveis "humanitários" poderia nos trazer de volta a dignidade do Trabalho, como se produzíssemos mercadorias para um certo diletantismo espiritual. Acreditamos que é possível trabalhar apenas para garantir empregos e salários sem consumir. Acreditamos, por outro lado, que ao frearmos o consumo de mercadorias poderemos distribuir melhor dinheiro, recursos e, principalmente, o Trabalho. Em nossas mentes embotadas, sonhamos com empresas estatais capazes de gerar Trabalho sem consumo desenfreado, garantindo um mundo puro e incapaz de mover-se para a exploração. Os capitalistas acreditam que ao se desprenderem do Trabalho, o único valor que lhes cabe é o do capital, como força propulsora em favor do nada, do nada que se alimenta de representações de poder, num mundo nababesco, como porcos bem educados e bem nutridos para o Natal das farras capitalistas.

E que aconteceu ao elegermos as mercadorias e as abstrações como forma de vida? Substituímos o outro pelas abstrações, foi isso o que fizemos. Hoje o outro não representa nada, não nos dá nada, não é sequer presença. O outro mendiga a nossa atenção, apenas isso, é um outro que se transformou em obstáculo. Entre nós as mercadorias, há o outro, uma barreira que nos impede de sermos felizes. Nenhum de nós pode ser contrário ao incremento social da tecnologia. Não posso me negar a usufruir do que a própria inteligência humana foi capaz de criar. Ao mesmo tempo, não me sinto confortável quando, ao invés de deixar que a tecnologia abra espaço para o encontro com o outro, eu me sinta compelido a desviar minha atenção para as coisas.

As coisas são apenas um caminho para o outro. É pelas coisas que chegamos aos outros e os outros se nos apresentam por intermédio das coisas. Nossa humanidade e nossa linguagem dependem das coisas, mas exatamente, porque nos garantem a relação com o outro. O outro não pode ser perdido de vista, não pode ser lançado num espaço de nadas e de vazios.

Com o outro eu me reconheço supremo de mim mesmo e também partícipe de relações que evoluem lentamente ao longo da nossa história. Não posso me esgueirar na tecnologia, esperando que ela me forneça o que a ciência, pretensamente, poderia fornecer ao homem do século XIX, uma idéia e uma atitude positiva diante da existência. Não é esse ufanismo que pretendo, não é essa euforia que advogo, pelo contrário. Sem a tecnologia não seriamos capazes de nos guiar até o presente, pois é o sonho palpável da nossa realização humana, concreta e, ao mesmo tempo, fruto das abstrações necessárias, que convergem para um fim, o homem, somente o homem.

Mas agora estamos diante da nova onda: o fim do outro, seja ele quem for, em favor das minhas coisas, em favor da minha quietude. As máquinas não me darão a consciência do meu existir, somente na relação com o outro sou capaz de saber que sou o que sou e no distanciamento das coisas, que se fazem presentes e ausentes, que se tornam coisas diferentes de mim, pois não suportaria a sensação de me tornar coisas, uma coisificação sem elos, sem passados, sem presentes.

A coisa que me submete ao sistema, pois na sua presença, sou já atraído pelas realidades e relações impregnadas de verdade insolente e desleal. A verdade da não-liberdade. No fundo, não sabemos o que fazer com a liberdade. Somos fundados na liberdade e pela liberdade é que somos capazes de conhecer o que somos e de sermos distintos do mundo e das coisas e dos outros que nos cercam. Talvez aí é que esteja a tragédia humana, ao acreditarmos demasiadamente em verdades e não na liberdade. Estamos agora presos a sistemas, e um deles, tão monstruoso que nos assola dia e noite é o Consumo. Como poderemos pedir aos consumistas compulsivos que parem de consumir? Como educaremos os pobres, que são o alvo de nossos esforços para ascenderem socialmente, que mantenham o pé no freio quando chegarem a uma outra classe social? Como poderemos convencer ricos, pobres e medianos e consumirem menos, em favor de todos e da Natureza? De que forma e quais serão os argumentos necessários para que os norte-americanos, juntamente com os novos-ricos-russos, deixem de consumir tanta besteira em favor das criancinhas da Etiópia? Quem colocará o guiso no gato? Alguns dos problemas apresentados na atualidade são falsos dilemas, acreditamos neles exatamente para aliviar nossas consciências pedintes, pois o verdadeiro problema, o princípio gerador deste cancro humano continua a nos afligir por todos os lados. Ainda não temos a coragem de nos ver sem o Trabalho, eis o pano de fundo que ronda nossas consciências.

Mas que maldade exigir dos pobres e miseráveis da terra uma outra vida que não seja a do Trabalho, mesmo que este seja salvo das garras dos capitalistas endemoninhados. Estamos envoltos pelo manto da ignorância, que nos cega e nos projeta para dentro das próprias abstrações criadas coletivamente.

O que seria feito dos pobres sem o Trabalho? O que seria feito das classes médias sem o Trabalho? Como poderíamos viver e nos reconhecer diversos sem o Trabalho? Confundimos o Trabalho com a necessária atividade humana diante da natureza.

Somos o que somos porque estamos diante da natureza, ela nos é dada e somos a ela dados. As relações são pertinentes uma vez que é a partir da natureza que somos humanos, sabemos que ela é o que é porque somente nós podemos nos referir à natureza como tal, nenhum outro ser, até o que nos consta, pode manter as relações em tal grau. Qualquer movimento, transformação, qualquer manipulação, qualquer motivação em direção à natureza é, por si, uma atividade necessária e socialmente pressuposta. Essa relação não é, de forma alguma, Trabalho. É a exigência necessária para que o homem realize sua existência, fundada na Liberdade.

A natureza não é nossa inimiga, é através dela que podemos nos ver homens e mulheres, é a partir de seus elementos que somos conduzidos a nos conhecer e a nos perceber sujeitos em um mundo diverso e necessário.

Mesmo nos países aparentemente mais justos do ponto de vista social, o Trabalho é a exigência para que o homem seja "cidadão". Conectamos a existência à cidadania. Quanta leviandade! A relação humana não se dá fora do valor. A mente humana, a razão, o juízo, a força do princípio da contradição se dá pelo valor. Nossa conduta moral baseia-se no valor. Escolhemos A em vez de B por causa do valor que nele colocamos, indistintamente das culturas. Haverá, enquanto houver homens e mulheres na face da Terra, relações baseadas nos valores. Construiremos coisas, baseados nos valores, praticaremos o escambo baseados nos valores. Sem o valor, que é o mecanismo do nosso pensamento, não seremos jamais capazes de sequer pensar, criar a linguagem, a língua, fomentar as culturas, produzir eixos paradigmáticos e sintagmáticos. As metáforas, as metonímias, as criações estéticas são fruto do valor.

O nosso grande problema é que estabelecemos relações de valor sem levar em conta a Liberdade. Quando somos introduzidos em sistemas que nos impõem, como pressuposto, o valor A ou B, então somos obrigados a nos condicionar, sem escolha, sem decisão, sem critério. Somos condicionados a escolher sem escolha, somos mergulhados em um sistema de valores sem referência, que é o próprio sujeito. O valor se torna um dado que vaga pelo ar sem qualquer ligação com a estrutura humana.

Valor de mercadorias, destinadas a uma satisfação momentânea, mas necessária.

Jamais deixaremos de consumir. Não sou tolo a ponto de imaginar uma sociedade de anjos e arcanjos, sem a presença de qualquer forma de consumo. Isso é balela. Mas a consumo como mecanismo perverso de substituição do outro, este irá acabar.

Mas há um grande aliado da Máquina-Trabalho. Os meios de comunicação de massa servem e servem-se da Máquina-Trabalho. Na TV, no rádio e nos jornais, todos precisam trabalhar. As sociedades dos filmes devem trabalhar. Todos têm o direito ao Trabalho. A metafísica do Trabalho está imposta à mídia. Como um grande discurso velado, a abstração do Trabalho fica permeada em todas as produções, textos. A estética dos meios de comunicação se baseiam na sociedade da Máquina-Trabalho, exatamente porque se desenvolveram e ganharam o mundo no auge dessa sociedade.

Sem a mídia, as três abstrações perversas não teriam veios tão eficientes de comunicação. Permaneceriam expostas numa vitrine e apenas o Trabalho seria a viga principal. Mas na mídia, as três abstrações confundem-se em valor e não se sabe qual delas é a essência da sociedade da Máquina-Trabalho.

Ora identificamos o consumo desenfreado como a mola mestra da sociedade.

Depois apontamos a abstração do Capital-Dinheiro, como forma acabada da sociedade do Trabalho. Mas em nenhum momento os canais de TV, as rádios, o cinema e mesmo qualquer outra linguagem, reconhecem que o cerne e o princípio fundador desta sociedade é o Trabalho.

A mídia é uma excelente guardiã dos valores da sociedade hipócrita e desmedida.

Todos têm espaço nela desde que, circunflexos, mantenham-se obedientes ao modelo social. Vendem mercadorias e por trás delas as idéias que forma o grande sistema de coerção social, globalizado e muito bem articulado.

Sem a Liberdade, somos convencidos de que não há caminhos possíveis para a realização da sociedade sem o Trabalho e muito menos sem a versão perversa da sociedade da Máquina-Trabalho. Como crianças, estamos com medo da escuridão, precisamos de sistemas acabados ou de contra-sistemas bem azeitados que nos garantam um lugar ao Sol e no céu, porque nossas agruras são de tal magnitude que apenas os sistemas são capazes de nos colocar nos eixos.

Podemos entender que a nossa suspeita em relação à Liberdade se deve ao fato de que não somos capazes de viver fora dos sistemas. Precisamos controlar e precisamos de controle. Qualquer experiência que não se vale dessa natureza, não servirá aos nossos propósitos. Somos compelidos a nos mantermos sob controle e sobre o nosso controle queremos o mundo e a humanidade. Não há nada mais sincero e desonesto que o controle por meio do Trabalho, promovido pela Máquina-Trabalho, que nos mantém em forma e desejosos de exploração.

Com o controle, tudo fica especialmente imóvel e uniforme. Mesmo que lá fora o mundo se encha e se perca com a sociedade da informação, mesmo que haja uma profunda fragmentação e um apelo à identidade e à diversidade, mesmo que todos os caminhos nos levem para o fim do Trabalho, ainda sim, necessitaremos de controle e de sistemas, sejam políticos, econômicos, religiosos, qualquer instituição que nos garanta a dose certa para não sairmos dos trilhos.

A falta de controle é uma falta grave para o sistema, qualquer um. A falta de controle nos indica que perdemos o rumo e podemos cair fora do universo sistêmico. É preciso nos manter no interior do sistema. Sem sistemas não nos reconhecemos. Por isso, antes somos obrigados a criar sistemas para depois sermos livres neles. Não somos fundados na liberdade. E por que isso é importante para o contexto? Exatamente porque tememos uma sociedade sem o Trabalho, porque este nos moldou de tal forma que mesmo nossa liberdade é secundária, em qualquer circunstância. Primeiro é necessário que haja o Trabalho e depois a liberdade. Qualquer sistema que não vise, em primeira linha, ao Trabalho, não será digno de outorgar liberdade aos seus membros.

Devemos inverter o processo? Será mesmo que a sociedade teria condições de compreender que é necessário um salto para a liberdade? O que estamos refletindo nestas parcas linhas da carta diz respeito não apenas a uma constatação sólida e fundada quanto ao modelo da Máquina-Trabalho, é mais: diz respeito a uma mudança de mentalidades e que devemos reconhecer em nossa ignorância, não é tarefa nada fácil para quem quer convencer a sociedade de que é preciso desmontar o modelo da Máquina-Trabalho. Isso significa que 270 anos de história e de escravidão devem ser enfrentados com a coragem de quem vê e experimenta as agruras da humanidade. Não fossem os avanços tecnológicos que nos colocam em contradição com o próprio sistema do Trabalho, não haveria as condições para o questionamento. Contudo, as condições estão dadas e são reais e é preciso aproveitar as oportunidades para abrir, ao menos, o debate com toda a sociedade, promover espaços para que, com coragem, possamos discutir os rumos da sociedade que caminha para o fim do Trabalho.

Paises emergentes acreditam que a sua salvação se dará pelo Trabalho. Não é verdade. Nada mais perverso do que acreditar nesse sofisma. Estamos diante de falsos dilemas dos quais se tornam verdadeiras arapucas sociais.

Agora, mais que nunca, temos as possibilidades para realizar a existência com o apontar para o próprio presente e não para o futuro. Não devemos ter sonhos nem alimentar esperanças. Os esperançosos e os sonhadores criam utopias e ideologias. Eu quero olhar para a realidade e deixar que ela se mostre, olhar para o passado e deixar que ele revele os caminhos para o presente e não promover constatações e contestações, mas é hora para que a hora se faça, numa contínua relação com a realidade real.

O Trabalho não nos deu a dignidade de que precisávamos. Nos deu sofrimento, dor, angústia, desespero, morte. Em alguns casos pôde nos dar alguns bens e melhores condições de vida. Mas o Trabalho nos obrigou a sermos diferenciados quanto ao acesso social, criou grupos dependentes, cuja face e a expressão visível é a miséria. Foi também capaz de reduzir a existência e a natureza (o meio-ambiente) a meros coadjuvantes na realização da humanidade.

Por isso, desejo que esta carta possa tocar alguém em algum lugar a fim de que encontre inspiração para começar a promoção de debates e reflexões sobre a sociedade da Máquina-Trabalho e seu fim.

Obrigado.

Mogi das Cruzes, Janeiro de 2003

Atanásio Mykonios