OS PARADOXOS DO VALOR NAS RELAÇÕES DA SOCIEDADE DA MÁQUINA-TRABALHO (MERCADORIA E TRABALHO)
Atanásio Mykonios
Introdução
Haverá, por certo, uma imensa tentativa que retorna. A tentativa de abarcar toda a realidade que se nos apresenta. Por certo, há em todos a busca inconteste da síntese que possuiria todo o cosmo e o congelaria como se pudéssemos dar a nós a certeza de que há uma eternidade que nos compete, que nos é própria. Nesse sentido, as tentativas são concretas, mas os resultados ilusórios. Nessa ilusão está nossa própria tragédia. Estamos atados a um destino do qual não podemos ser apenas síntese almejada.
Somos compelidos ao futuro, nos projetamos como quem se lança para o que desejamos possuir. Mas o movimento nos interrompe, como um muro que nos impede de sermos o que ansiamos, numa teia intrincada de sonhos, pensamentos e ações. Cada palavra se perde, cada gesto se concentra em si mesmo e tudo se perde no processo interior do movimento. Mas parece que algo nos é dado como pleno, uma realidade que insiste em permanecer como é, um vestígio de estabilidade com o qual imaginamos um lugar seguro.
A escrita tem mais complexidade nesse processo de ruptura. Cada qual, à sua maneira, tenta romper as amarras e pintar a tela da sua existência, com todos os traços da realidade e com todas as suas cores. Nossa escrita é uma tênue tentativa de suprir a realidade, quase como num afã de suspiros que atingem as alturas, como formas informes a pairar pela mente, insatisfeitas com as informes formas do desejo, que junta e separa, que monta e desmonta, sempre com a sensação perene de insuficiência.
Sobre a sociedade, ainda mais espetacular é a tentativa de congelá-la, de transformá-la em um pequeno fetiche do qual poderíamos sentir afeição, ou segurança, como a um deus que a tudo vê e a tudo toca. Prover e prever o futuro da sociedade, apontar o real, saber onde ele está, compreendê-lo e manipulá-lo, eis a nossa eterna vontade.
Porém, nada disso é possível. Nossas palavras se derretem como o gelo ante o Sol, são como espuma que se esvai pela água. Tudo o que dissermos terá um limite, tudo o que apontarmos terá um limite, tudo o que fizermos terá um limite. O limite exato de nós mesmos, de nossa linguagem, de nossa perfeita aptidão para o valor.
Nosso limite é o próprio valor que nos dá a sensação de abrangência e ao mesmo tempo nos esmaga. Nosso limite é o limite da abstração que aparentemente não conhece limites, pois a realidade tem os seus limites definidos e não há qualquer forma possível que não se realize em uma realidade limitada. Nossas construções e abstrações se tornam complexas, mas sua realização é uma realidade palpável.
Por mais perspicazes, audazes, sensíveis, não seremos capazes de responder às nossas grandes indagações e dar vazão aos nossos maiores problemas sociais e existenciais. Por mais que nosso tirocínio nos aponte o caminho, ainda seremos limitados pela contingência humana e social. O que nos caberá é uma tarefa hercúlea, necessária, possível, urgente.
Caberá a todos a tarefa de desmontar a armadilha abstracional da qual somos vítimas. A abstração do trabalho que nos embotou a mente e nos enclausurou em uma determinação social, cujas relações são preditas exclusivamente pela mercadoria, conseqüência do valor criado pelo trabalho. Somos vítimas e algozes e precisaremos nos tornar cônscios de nossa miséria e de todas as mazelas que nos envolvem e que nos mergulham em um mundo confuso e difuso.
Estamos a viver no olho do furacão. Muitos não o percebem. Outros não o entendem. Muitos o negam. Alguns o sentem. Vários o desprezam. Mas não há quem não sofra as conseqüências desse furacão avassalador. Tudo em nós está a se mexer. Tudo em nós está a romper-se, nossos sonhos e nossas visões, nossas leituras e nossas alucinações.
Os desafios consistem em compreender nossa própria mente e as relações em que nos metemos em virtude dos sistemas sociais e complexos, que nos nutrem e ao mesmo tempo nos matam como animais sem qualquer defesa. Somos capazes de nos submeter às mais trágicas injustiças e, paradoxalmente, construir grandes edifícios cuja realidade está na sensibilidade, no afeto, na partilha.
O que somos e o que pretendemos ser. O que é e o que deve ser. Talvez aí residam os grandes e profundos mistérios que dizem respeito à nossa ação social e moral. Como queiram ou não, o valor nos impele a uma crítica e a uma reflexão constante sobre os resultados visíveis do processo embutido nas relações sociais cotidianas. Por um complexo mecanismo multiplicador, fomos capazes de criar um sistema social de valores, baseado na sociedade da Máquina-Trabalho que se alastrou como um rastilho de pólvora por todo o mundo conhecido.
Um lugar para a filosofia?
Até que ponto seria legítimo a uma crítica de cunho filosófico pretender ser prescritiva diante da sociedade? Não seria sempre mais adequado, polido e educado, mostrar apenas as mazelas do cotidiano, demonstrar os erros e equívocos lógicos dos sistemas em voga? Não seria mais prático confinar a crítica filosófica aos muros da academia e de lá lançar luzes para iluminar a fronte dos ignorantes e das gentes urbanas que vagueiam por uma resposta?
É possível que a isso se preste bem a filosofia. Talvez apenas em contribuir parcamente com o diagnóstico da sociedade. Por algum motivo de inércia estrutural, nos vemos sempre a um passo atrás, principalmente diante dos acontecimentos e das provocações realizadas pelos sistemas. É como a justiça que sempre espera por ser provocada a fim de agir conforme os valores vigentes, os naturais e os universais.
Como uma juíza gorda, enfadonha, imóvel, muitos desejam apenas que a filosofia permaneça incólume frente aos acontecimentos. É mais cômodo ficar a observar as coisas. Como se fôssemos compelidos pela fenomenologia a ver, a observar, a deixar que as coisas se manifestem num banquete de sensações. Sem dúvida, é imprescindível que as coisas se mostrem em toda a sua plenitude, mas tal manifestação não pode deixar de levar em conta a nossa própria presença. É a nós que as coisas se manifestam. É para nós que elas existem. Mesmo que deixemos que as coisas falem, elas falarão aos nossos ouvidos e aos nossos sentidos, em um processo dialógico do qual não podemos nos isentar. Haveremos sempre de ter sobre as coisas alguma forma de ação, mesmo se por alguma razão não nos aproximemos delas a ponto de introduzi-las conforme nossa vontade. Elas continuarão a serem mostradas, e por algum motivo, não poderemos guardar em algum baú transcendental os nossos preconceitos e os nossos desejos. Manifestadas as coisas, a filosofia age. Deixando de lado as coisas, a filosofia age; tirando as coisas do cenário, a filosofia continuará a agir. A filosofia não se move por conta própria, ela é movida pelos homens e mulheres. São eles que fazem a filosofia agir numa realidade concreta, histórica, visível e plausível, invisível e possível.
Mesmo que deixemos fenomenalmente as coisas falarem, por si ou em si, já pressupõe de nós uma ação deliberada, pois poderíamos não deixá-las expressarem o que são ou como nós desejaríamos que devessem ser.
A conduta provável e possível é a experiência originária, mas ela pode ser congelada no processo do movimento? Será a vida um eterno retorno das contingências humanas pela sobrevivência ou o grande dilema da separação promovida pela sociedade do esclarecimento?
Por tempo suficiente, na modernidade, a filosofia teve de submeter-se ao utilitarismo e ao pragmatismo da sociedade produtora das mercadorias e parece que ainda é assim. Submeter-se e legitimar as relações conseqüentes do processo social da Máquina-Trabalho. A ciência deve ser legitimada, podemos constatar pela tentativa de Kant4 em corroborar a necessidade da ciência a serviço do pensamento e do esclarecimento. Toda ciência se depara com o COMO e este se converte na mola propulsora da ação do homem diante da natureza e da totalidade.
Há tempos a filosofia tem apontado os equívocos da sociedade produtora das mercadorias. Não poderia, outrossim, fazê-lo sem a ajuda das ciências que se determinam conforme o seu objeto. Mas o fez com a certeza de que daria a sua contribuição. De novo, a filosofia deve sair dos quadrantes intra-muros e voltar a dialogar com a sociedade, com o mundo e consigo mesma, se possível. É preciso deixar os cargos, as deferências e os títulos para resgatar a praça. Um pouco dessa praça se dá no âmbito planetário com as comunicações e a tecnologia da informação, mas o homem comum que ainda vê sua existência delegada pelo Trabalho, pelo valor das mercadorias não tem espaço nessa sociedade de gênios e paquidermes. Os ignorantes sofrem pela marginalização.
As escolas filosóficas continuarão a demarcar a realidade, pois é da sua natureza. É da natureza dos sistemas filosóficos responder e desvelar o velado. É quase que sua função prescrever uma conduta pertinente à realidade abarcada. É quase inevitável que os outros esperam da filosofia uma resposta segura. É imperioso mostrar as conseqüências de tais ações e escolhas.
E todos continuarão a limitar-se, pois limitado é o olhar sobre a realidade.
O risco do preconceito
Ainda mais arriscado é debruçar-se sobre a realidade e dela subtrair inferências e conclusões que podem fazer parte de um novo mundo sistêmico ou doentio. Assim, todo aquele que se dispõe à crítica, deve saber que a força de um sistema pode arrebatar a consciência e determiná-la, a tal ponto que ao invés de promover um serviço ao pensamento e à sociedade, o crítico se dispensa da realidade e vive seguro com a sua própria realidade. Essa é uma das mazelas, das insuficiências de quem pretende diagnosticar ou pensar a realidade. É preciso um esforço descomunal para ver-se vigilante diante dos propósitos e dos limites lingüísticos e lógicos.
Alguns perseguem seus objetivos por toda vida. Alguns se agarram ferrenhamente aos seus propósitos, às suas teses e hipóteses de delas não abre mão a ponto de construírem sistemas tão perfeitos que só eles cabem em suas próprias fôrmas. E como conseqüência, o processo culmina no preconceito, na aversão, no isolamento, na perfeição absurdamente esquálida e infame.
Somos constantemente impelidos a fazer de nossas sínteses a resposta definitiva para o fim da angústia e para o termo de um caminho. Mas nada é tão seguro e nenhuma resposta pode ser dada sem que sejam propiciadas as condições da possibilidade de sua realização, bem como das presumíveis estradas que se perfilarão diante da grandiosa empresa em tentar enxergar a realidade. Apenas a liberdade pode garantir que nada seja perfeitamente isolado da realidade e montado como um altar para a totalidade.
A crítica à sociedade das mercadorias está embasada na perspectiva da superação do trabalho na grande engrenagem social e política da Máquina-Trabalho. Mas não pode ser um pressuposto fechado em si mesmo, uma forma acabada e determinada, posto que há tantos, com brilho, a fazerem a crítica e a mostrar as mazelas do sistema que começa a agonizar.
É mister pressupor que toda contribuição é bem-vinda e de grande valia para a superação. Mas é também imprescindível compreender a enorme tarefa de pensar e repensar nossa sociedade e nossas próprias relações humanas, provocando o debate em todos os quadrantes da vida social e em todas as oportunidades que se apresentem.
Mas para um pobre pensador, que vive abaixo da linha do Equador, os desafios são ainda maiores, pois a consciência da sociedade do Trabalho ainda é quase que totalitária e o mundo que gira aqui é da dependência, da miséria, da carência, da indigência, da doença e da ignorância. Somos intelectualmente subnutridos, nossas academias ainda se ressentem de uma grandeza de espírito.
É preciso dialogar mais e viver mais. O perigo é romper as barreiras dialógicas e penetrar no mundo obscuro dos preconceitos e das estruturas que esmagam ainda mais o homem e sua perspectiva de realização.
Os paradoxos do valor
Tudo na relação humana baseia-se no valor. Cada coisa que escolhemos, cada palavra que dizemos, baseia-se no valor. O valor é atribuído na medida em que se constroem as essências. De um ponto de vista, a existência deve preceder a essência quanto ao processo que consta de elementos que apontam para a liberdade do indivíduo. Mas não devemos procurar a verdade nas essências, e sim saber que o fundamento de qualquer verdade está na liberdade. Nessa perspectiva, deve existir a coisa e depois nela deve ser colocado algum valor. Existimos antes de qualquer coisa. E antes que se diga o valor em nós embutido. Esse valor que se baseia na relação existe no tempo e é transformado conforme a sua historicidade.
Como Adorno1 sublinha, fomos aos poucos precursores de sistemas complexos, numa construção de abstrações sem fim, elaboramos, com essa separação da experiência originaria, sistemas de valores envolvidos em uma estrutura lingüística, vivenciada pelo tempo em sua forma arquetípica. Na linha do tempo, o pensamento busca a síntese desejável e ansiada, no entanto, essa síntese jamais se realiza como um estado estável, monolítico, seguro, intocável e imóvel. O sistema de valores pretende ser essa síntese que caminha no tempo, num processo movente ininterrupto. É o velho conflito entre o estático e o móvel. Mas o pensamento humano pretende aprisionar as essências das coisas e congelá-las no tempo. Como se o tempo pudesse ser congelado.
Nas formas abstratas que passaram a dosar a vida e o comportamento, nela encontramos sistemas que pretendiam abordar toda a existência humana. Como bem reflete Freud, quando o coletivo assume o papel civilizatório do homem, deixa para trás, paulatinamente, as formas reversas instituídas no mito. Mas quanto mais nos queremos afastados do mito, tanto mais nos assemelhamos a ele. Construímos sistemas que se tornam fetiches em si mesmos, sistemas que tendem a dar uma explicação, numa forma tautológica da própria existência humana.
Daí, não escolhermos mais o que somos e sim somos escolhidos pelos sistemas de abstração, num redemoinho infinito, numa espiral que não pára. As estruturas sociais deixaram de viver numa roda-gigante, para se lançarem na catapulta da abstração. Com a roda-gigante, num momento estaríamos acima das coisas e das estruturas, noutra, estaríamos por baixo, poderíamos ser esmagados por elas, mas de qualquer maneira, haveria sempre a possibilidade de nos colocarmos em uma posição de equilíbrio, poderíamos dialogar com as realidades.
Criamos o sistema de produção de mercadorias. Em 270 anos, aproximadamente, todo o planeta se converteu numa grande esteira produtora de mercadorias, tudo se tornou uma prevaricação social, em torno do modelo institucionalizado pela Máquina-Trabalho.
Na estrutura de valores das mercadorias, há uma dose constante, às vezes consciente e outras ingênua, de desejo de transformar as mercadorias em um fetiche necessário e estável. O fetiche que se tornou o mito da era moderna. O necessário reside na função metafísica, a priori, indubitável, inquestionável; o estável é a procura de uma síntese perfeita entre a mercadoria, o valor, e a necessidade do sujeito. O valor das mercadorias não é uma lei necessária, pois nenhum contingenciamento é necessário. A metafísica do sistema insiste em determinar algumas verdades como eternas, uma ontologia que não se submete ao crivo da crítica, porque há uma componente de substrato que aparentemente está se realizando na íntegra. O pragmatismo do sistema das mercadorias se reveste de uma aura de verdade e nada o pode demover, ao menos, de sua fonte de imanência.
Toda forma de nominação das coisas não é capaz de determinar a coisa como uma extensão completa e perfeita entre o sujeito que formula a nominação e as coisas. Kant parecia dar vazão a esta constatação, mas ao dar escoamento essencialmente à razão como princípio que deve reger a vida e deter os males exteriores, propiciou uma avalancha de construções de abstração, legitimadas pela ciência.
A linguagem, como um sistema de valores, é o possível humano para a sua expressão e a sua leitura cotidiana. A linguagem nos dá a expressão das operações determinadas pelo pensamento. Como uma caixa que se prefigura conforme sistemas e condiciona a existência como se esta pudesse ser conformada em uma caixa, uma fôrma, e o valor está contido nessa caixa de pandora. Nada pode ser contido no exterior, pois não há o exterior para a estrutura da linguagem, não há o conhecido para fora do que existe. O valor só pode estar no interior do sistema, por isso, não pode ser uma categoria ontológica, o valor se constrói com a existência.
Nessa perspectiva, o valor de uma mercadoria se transforma ou se faz ao longo de uma trajetória, que deve percorrer um caminho até ser útil a alguém. No processo infinito das reproduções abstratas, o produto dessas abstrações gera uma gama de novas representações que precisam se realizar materialmente. É uma ciranda interminável, reflexo da própria constituição do ser que se realiza no tempo – aqui das mercadorias – ou que procura uma adequação mais próxima. O sistema de produção e circulação das mercadorias parece ter uma intenção de deter o valor para que este circule, mas, paradoxalmente, este valor não pára de circular e de ser inflado, exatamente em virtude do processo de abstração que se multiplica. Para o receptor da mercadoria, num primeiro plano, pode haver o congelamento do valor, mas o valor se torna valor do valor e até mesmo para o sujeito que adquire as mercadorias, para este também o valor parece mudar de cor e de configuração, conforme uma determinação momentânea, realizável no tempo e no espaço histórico em que se encontra o próprio sujeito.
O valor dado à mercadoria, após a sua aquisição não se mostra da mesma maneira, pois nem sempre o adquirente da coisa feita valor aceita ou concorda com o valor dado e que o obriga a tê-la com a quantidade de valor abstrato (dinheiro), caso admita possuí-la por completo. O valor que está na mente do consumidor pode ser outro.
Nessa relação entre mercadorias e sujeito, o valor é um dos componentes decisivos, sem este, o indivíduo está plenamente convencido de que não pode se aproximar das mercadorias. Pouco ou quase nada faz o sujeito para compreender a dependência à qual está em relação à coisa-valor. A mercadoria parece determinar um comportamento que está fora do alcance do próprio adquirente das mercadorias. É uma relação que foge à alçada da escolha do indivíduo, ele não consegue fugir a esta relação, determinante, presente, onipresente, onisciente. O consumidor se torna refém de um processo que cria cada vez mais valor, o valor que submete o homem a uma interminável indigestão social. Dessa forma, numa interminável construção de abstrações, o indivíduo consumidor percebe, em algum momento, que a sua existência só tem sentido no complexo jogo das mercadorias e que para tanto, precisa despender um precioso tempo de seu corpo, locado para a tarefa de aquisição das mercadorias e assim convencer-se de que esse processo tem algo de metafísico.
Depois de a sociedade ser convencida de que não há mais qualquer alternativa social para satisfazer as suas necessidades, pois até mesmo a caridade, a misericórdia, a partilha, só têm sentido no interior do próprio sistema, os grupamentos sociais se vêem aprisionados a uma armadilha sem fôlego. O que resta é melhorar o sistema para manter alguma forma de dignidade, preservar a estrutura moral que convenceu a sociedade de que é assim que as coisas se fazem. Os valores do Olimpo baixam à realidade dos pobres mortais e se realizam na forma mais perversa possível, às avessas, como num reflexo negativo. A realidade é manipulada pela abstração e esta se multiplica por meio do real, determinado pelas relações do valor das mercadorias.
Uma experiência totalizante, que possibilita a liberdade com a vida e as coisas não nos é permitida. Às crianças é reservado um condicionamento, que parte da linguagem, como herança, e depois se transforma na reprodução do próprio sistema. Todos são compelidos a se curvarem ao fim em si mesmo e nada mais. Cada valor humano só pode ingressar e ser aceito se puder comprar e produzir valor. Não pode haver, por conseguinte, realização humana, apenas a obediência pode trazer algum alívio ao "consumidor". Este se vê aterrorizado pela obrigação de manter em um determinado ponto B a mesma condição material que possivelmente tinha num outro ponto anterior, A. O movimento ininterrupto em direção ao processo de aquisição das mercadorias, causa um valor em si, o valor de propulsão do sistema.
As esquerdas passam por um mal-estar. Querem o trabalho como forma de garantir moralmente a eternidade humana, mas não aceitam o valor das mercadorias. Gostariam que estas fossem distribuídas como em um grande salão para albergados. As esquerdas não querem que as mercadorias sejam distribuídas para os mais ricos, apenas, mas não sabem o que fazer se destruírem o trabalho-abstrato, que por conseqüência gera o valor.
A lógica do processo parece determinar um curso para os acontecimentos. Mas o curso nem sempre é de fato uma coisa natural e necessária, não é um caminho seguro. De alguma forma que a história nos reserva, a verdade do sistema de produção das mercadorias está por toda parte, paira como um deus que determina o destino dos ricos, dos pobres e dos desdentados. Em algum momento, será preciso romper com essa verdade que condiciona a realização humana a um único sistema: o sistema da Máquina-Trabalho que nos lança para o mundo das mercadorias.
O fato é que os mais pobres, as classes médias, os professores, os dentistas, os médicos, os policiais, os coveiros, as enfermeiras, os pastores e padres, os fuzileiros, os faxineiros, as lavadeiras, os engenheiros e tantos outros "profissionais", assim como todos nós, não conseguem mais viver sem a droga que alimenta a todos. As sociedades estão entorpecidas pela verdade que pretensamente é distribuída nos balcões e nas gôndolas de supermercados como se fosse um princípio ontológico, eterno, imutável, como se fosse a verdade determinada pela vontade de Deus.
Alguns não admitem essa inexorável produção de abstrações que gera mais valor e mais mercadoria. Outros, no entanto, por sua formação empirista ou por compreenderem-se exclusivamente no movimento, sabem que sua existência se realiza plenamente no processo infinito da construção desse sistema de valores. No entanto, por todos os lados, o fato é que a mercadoria, inflada pela beleza tecnológica, nos causa grande prazer e satisfação, até mesmo no que concerne ao desenvolvimento de necessidades básicas. O valor, intrínseco a toda relação, nos impele como um imã em direção à mercadoria.
Como bem observa Robert Kurz2, a sociedade atingiu uma "riqueza de necessidades" incomensurável. No entanto, há desafios que precisam ser enfrentados. Um deles diz respeito ao que fazer com tal riqueza, com a profusão de necessidades de que somos hoje portadores. Em nalgum momento, deveremos colocar o guiso no gato. O fato é que todos esperam a iniciativa, alguém precisa dar o primeiro passo, mas ninguém se atreve, ninguém se encoraja para tanto. Quem perderá primeiro os privilégios? Então, deveremos romper os padrões civilizatórios e forçar os mais poderosos a abdicarem de suas riquezas e de seus valores? Morreremos, nós, em praça pública, em protesto da multiplicação dos valores?
De alguma forma, esperamos a inexorável queda do império das mercadorias. Acreditamos que isso é possível pelas contradições internas do próprio sistema. Nada mais poderá ser capaz de deter a derrocada da sociedade do trabalho que gera valor e mercadorias. Como bons espectadores, vigiamos e oramos para que o fim seja próximo, e contamos as horas para a implosão desse pesadelo. No entanto, nossa linguagem e recursos não conseguem atingir as pessoas mais simples, os vendedores dos próprios corpos, como nós e tantos outros, os "trabalhadores" que atravessam as metrópoles pendurados nos trens suburbanos. A eles é reservada a sorte de esperarem e morrerem lentamente, como boas formigas a serviço da grande mãe, o sistema que os oprime. E nós contamos as horas para não perdemos o começo do espetáculo. Precisamos estar presentes!
A essência
O valor guarda uma relativa proximidade com a essência da coisa. Mas neste caso, em se tratando de valor, há que considerar duas essências: uma que determina a condição de uso da coisa, por exemplo: para que serve uma caneta, qual a sua essência?; e outra essência diz respeito à condição de troca, que é determinado pela forma como se procedem as trocas entre coisas desiguais. O valor que está na mente do adquirente pode não ser o mesmo contido abstratamente na coisa.
Quando uma coisa é fabricada para ser posta em circulação é dada a essa coisa um valor de troca. Mas o que determina o valor dessa troca, e o que pode ser plausível para que todas as coisas sejam trocadas por meio de um único substrato, o dinheiro? Esse fator que determina o valor das trocas é o trabalho gasto em uma temporalidade. Há, no entanto, uma relação desigual entre o valor da mente do consumidor e o valor da coisa apresentada. O consumidor não tem escolha, o seu valor apenas serve para uma aproximação da coisa para satisfazer suas "necessidades".
A essência pode ser um ente de razão, e é. Nesse caso, fica apenas na mente e na imaginação das pessoas. A coisa que é trocada é concreta, uma coisa que é coisa e não apenas uma idéia. Essa coisa deve conter em si uma capacidade de utilização, seja qual for a forma de uso nela contida. A coisa então somente pode ser trocada quando embute-se nela um valor, um conceito controlado socialmente pela subjetividade, pela abstração. É de fato determinado pelo valor. Não se trata de um valor derivado como o lucro, os juros, etc., mas de um valor que se manifesta no exato momento em que a coisa é feita. A determinação ou o cálculo desse valor, no exato momento que a coisa é feita, acontece por uma operação de tempo médio, porém sua estrutura é frágil, pois depende de uma construção subjetiva, relativa a, impossível de ser medida cientificamente pela experiência.
Esse ente que dá a conhecer-se nas coisas, não está nas coisas, mas nas pessoas, nas mentes. O conceito tem uma amplitude universal, mas só se realiza nas coisas particulares. De que adianta conhecer o valor de uma determinada coisa? De que nos importa saber o que é a Inteligência, o Amor, a Solidariedade, a Fraternidade? Estes conceitos só se realizam na concretude das pessoas e em suas relações. Sem o outro não somos absolutamente nada. Qualquer conceito se realiza quando é visível nas coisas, no particular, no chão da existência, na relação com e no diálogo com (pessoas e coisas).
A essência sem uma matéria não se faz, não é, não pode ser nem representar um algo determinado para o homem. Se despendemos um certo tempo para moldar a matéria, esta se faz por meio de uma subtração relativa ao gasto de alguém que se dispõe a transformar a coisa em algo que tem valor. Mas se ao invés de pessoas houver uma outra coisa que não tem a capacidade de atribuir valor às coisas feitas e que, em última análise, se assemelha às coisas feitas e moldadas, então o valor não pode ser impresso na coisa. Os valores nela impressos são uma derivação, como o lucro, os juros, etc. e estes "valores" são a progressão de uma abstração que não encontra chão para assentar o seu edifício social.
Se, por outro lado, a mercadoria só é tal em si mesma por causa do tempo gasto por alguém para moldar a matéria e se não houver mais o tempo determinado para a realização da mercadoria, então esta perde a sua essência, em outras palavras, a matéria fica sem um conceito de valor. entenda-se, o conceito da troca, mas pode permanecer na coisa o seu valor intrínseco de uso. Parafraseando Heidegger, a mercadoria carrega o valor. Sem o valor, a mercadoria deixa de ser mercadoria, é coisa, que tem um valor, mas que não pode ser mais impulsionado, como processo socializador, através do valor. Permanece a essência como condição de uso e não a essência como troca.
Se as coisas existem para mim e eu as atribuo o valor, mesmo assim, as coisas não mostram num primeiro instante o valor que elas têm. Nesse sentido, o capitalismo da produção das mercadorias está baseado em uma utopia energizante, uma utopia que pretende conter o ser e o tempo em uma única categoria, criada pela abstração: a mercadoria.
E a mercadoria assume a função de intercâmbio social, acima de qualquer forma possível de humanização das relações sociais. Para tanto, Adorno salienta:
"O aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos homens." 1
As relações provenientes das mercadorias
Muitos encontram dificuldade em fazer a crítica ao processo da sociedade das mercadorias de uma forma puramente negativa. O negativo diz respeito ao produto derivado, isto é, simplesmente à mais-valia. A mercadoria se torna um elemento de socialização mais forte que o próprio humano. A humanidade foi capaz de substituir a relação com o OUTRO pela relação totalizante das formas de troca das mercadorias. A implicação dessa socialização precede a mais-valia e a outras categorias que se derivam do processo de produção de coisas por meio do trabalho-abstrato.
A mercadoria parece incomodar muitas pessoas e de fato traz um constrangimento social, uma vez que há uma série de entraves para a sua aquisição. Além dos aspectos físicos da produção de mercadorias e seus limites óbvios, há dificuldades de aceitação quanto ao processo de promoção social realizado pelas mercadorias. Há como que um desejo velado de possuir mercadorias, mas uma certa moral social impediria a todos de adquiri-las em uma mesma quantidade. Quantitativamente, todos sabem, consciente ou inconscientemente, que não há mercadorias para todos e não com a mesma qualidade. As mercadorias possuem um limite físico determinado pela própria natureza, de onde se originam.
É certo que a mercadoria nos coloca em um invólucro, nos propicia a segurança como se estivéssemos protegidos pelo manto sagrado. De alguma forma, fomos convencidos de que a mercadoria deve existir como tal; o problema que se coloca, para nós, é a forma como essa mercadoria chega às nossas prateleiras, já que não somos capazes de abrir mão das nossas relações sociais baseadas no trabalho-abstrato.
A Máquina-Trabalho sustenta a necessidade de termos acesso às mercadorias por intermédio do processo de locação do tempo e do corpo. O corpo em breve não será mais necessário para a produção das mercadorias e o tempo se extinguirá, pois a máquina não é capaz de produzir tempo nem de abstraí-lo conforme o que é da natureza e da estrutura humana.
Moralmente há um juízo de valor sobre as mercadorias. Não poderia ser diferente. Quando as esquerdas operárias desejam que uma entidade social garanta a distribuição e a socialização das mercadorias, está, implicitamente, admitindo o valor "socializante" das mercadorias como um fim em si mesmo. A maior hipocrisia é quando as esquerdas desejam as mercadorias mas as desejam para todos, como um sinônimo de "justiça social", mas mantêm o processo socializante das aquisições perversas da mercadoria.
Contraditoriamente, na relação social, a determinação da mercadoria representa uma categoria que sustenta as pessoas diante das outras. O que as pessoas são fica escamoteado pela luminescência do valor das mercadorias. Se o valor das coisas, imposto pelo trabalho é uma contingência, se o trabalho, em si, é uma contingência determinada como mais que um paradigma, uma verdade em si, toda relação humana passa a ser contingenciada pelo trabalho, pelo paradigma e pelo valor, que faz encobertar uma totalidade existencial que se construiria e que fica atrelada ao processo de troca das mercadorias, como forma acabada em si.
Mesmo assim, ainda essa conduta não explica por completo uma relação ambígua com as mercadorias. É possível compreender que num processo originário, o homem se encontre diante do mundo através e por meio das coisas, mas a produção de hipóteses e sistemas complexos de abstração é algo inevitável, na medida em que se torna projetado ao futuro. A relação é surpreendida pela adequação contínua, mas por algum motivo, o ser humano tende a se convencer de que a sua realidade vincula-se ou ao mundo como forma totalizante de sua própria leitura, ou se confina em um "hiperurâneo", cuja realidade se concentra nas maravilhas da idéia, em um universo atávico e previsível. A mercadoria não pode fugir a esse contexto.
Por outro lado, nos vemos diante de um sortilégio de acontecimentos que envolvem as mercadorias. Quase sempre nos colocamos em defesa dos mais fracos e desavisados. Acreditamos piamente que há uma orquestração global contra os indefesos. Pensamos mesmo que a melhor atitude seria a de proteger os cidadãos contra o dragão do consumo e das mercadorias. Imaginamos que os "consumidores" se tornaram vítimas de uma gangue capitalista que empurra goela abaixo mercadorias sem que haja qualquer forma de anteparo social que os proteja. Os consumidores deixaram de ser cidadãos para se tornarem vermes rastejantes em torno à mercadoria. Nada os protege mais. As empresas de publicidade cospem suas mensagens como o velho e bom dragão medieval. Precisamos salvar a sociedade do consumo! Devemos nos mobilizar contra a avalancha de consumismo que tomou conta das almas indefesas dos cidadãos. O consumismo é denunciado pelas esquerdas e pelos preservacionistas como uma forma de concentração ainda maior de renda e poder. Os consumistas estão, conforme seus detratores, concentrando mais riqueza e os pobres não têm como se defender contra a voracidade dos tenazes consumidores de classe média e privilegiados.
Infelizmente, nós mesmos não encontramos respostas para algumas perguntas cruciais. Daí um desejo incontido em promover um discurso propício ao próprio esvaziamento. O discurso que aponta para o futuro sem respostas, talvez porque não encontramos horizontes seguros para pousar nossa grande nave, a nave da Máquina-Trabalho, pois requereria de muitos a própria superação dessa abstração e coerção planetária. O homem deve ter pelo menos 6 milhões de anos na face da Terra. Precisou de 50 mil anos para colonizar o mundo e apenas 250 anos para criar um sistema de abstração tão controlador que todos submete.
Os valores ditos universais e eternos refletirão a ânsia de uma sociedade em realizar-se por meio dos mesmos, numa vida material que distingue as pessoas na forma de produção das mercadorias. A vida material parece perder valor quando o que importa é a realização cínica do ser, da alma, da cultura, do fiel, que se apresenta como um algo que existe antes das coisas e do mundo, independente do que é exterior, numa separação que deixa o indivíduo aparentemente confortável: usufruir das coisas em benefício próprio, mas em nome de uma valoração ideal, de um espírito chamado de cultura, de afirmação do desejo de determinar a natureza e o seu próprio controle.
A separação do indivíduo para que tenha a liberdade de ser e realizar-se como ser nas coisas é um processo de ordem utilitarista e resultado de um conflito mortal do homem consigo e com o meio que o cerca. Dessa forma, o que lhe cabe é controlar ou destruir o que está ao seu redor. A mente que busca incessantemente uma paz de montes, inexistente, travará com o meio a luta fatal e definitiva para encontrar um refúgio aparentemente seguro.
A partir disso, todas as manifestações humanas que pretendem à liberdade, serão esmagadas ou paulatinamente enquadradas ou aprisionadas. O que deve prevalecer é o valor que dá o valor, como um sentido a priori necessário, a troca como regeneradora da realidade e re-promotora da existência. O valor instituído pela forma do trabalho abstrato rege a vida como um deus que tudo vê e tudo toca. A totalidade se esgota em si num círculo interminável, que sempre volta ao mesmo ponto, como que a determinar uma trajetória perfeita e autêntica, aparentemente autônoma, numa avalancha de condicionamentos. O espírito se reveste de racionalidade e supera todas as mazelas e misérias, apresenta o valor que gera o valor, a abstração que gera a abstração.
No entanto, as mercadorias nos obrigam a termos uma relação social cruenta e desumana. Determinados pelas mercadorias, como um sentido que a tudo dá sentido, até mesmo para a linguagem e o ser interior, o homem atual não consegue fugir a isso. Parece não ter para onde escapar, não pode encontrar nem fundar uma sociedade alternativa; a rede de produção de coisas-mercadoria teceu uma tal capilaridade e nada escapa ao seu olhar. Todas as sociedades vivem, dependem ou morrem pelo mesmo sistema global. A cultura se torna monolítica, ao mesmo tempo em que há a fragmentação social em grande escala. Parece não haver escolha, assim como não há a escolha para a morte, não há a escolha quanto ao sistema.
Os benefícios da tecnologia e da ciência não chegam e não podem chegar a todos por meio das mercadorias. A cultura da afirmação capitalista se espalha e com ela a dependência social esmaga os miseráveis. A expressão dos grupos se multiplica às vezes revestida de rancor, outras de ódio, muitas vezes de mendicância. Os grupos se manifestam diante da crise da sociedade das mercadorias. De fato, a tecnologia coloca os grupos em um mundo cientificizado, cuja informação circulante está a uma velocidade estonteante. Com o acúmulo das informações, o desejo de afirmação se torna premente e necessário para a sobrevivência.
Uma sociedade entorpecida
Um dos grandes flagelos humanos da atualidade é a droga. O seu consumo pode atingir qualquer pessoa, de qualquer nível de instrução ou de renda. Não importam quais as causas. Freud3 citava o fato de haver em um grupo ou em uma sociedade a possibilidade de fugir à realidade por meio do processo que ele designava de intoxicação.
Ninguém está livre das amarras da realidade. Ela é terrivelmente indeterminada no seu curso e a necessidade de controlá-la diz respeito à nossa própria limitação em contê-la. Não há qualquer forma de proteção diante da realidade. Ela nos interpela a todo instante.
A humanidade vive uma intoxicação planetária, com o atual sistema de produção de mercadorias que se alastrou pelo mundo como um raio. A realidade se explica por si só, pensam os "trabalhadores". Não há o que fazer, a não ser encontrar mecanismos de defesa, de resistência, de aceitação do sistema. De uma forma ou de outra, há um entorpecer de mentes e corpos, que vagueiam como sombras em torno das mercadorias. A hipnose coletiva nos dá a sensação de que o mundo é assim e que nossas relações sociais atingiram o ápice da evolução humana social. Ainda não é tudo, ainda é pouco para a realização da humanidade, no entanto, a grande maioria está plenamente convencida de que não há outro caminho se não o de obedecer ao modelo e fingir-se de morto quando convier.
A obediência ao modelo registra determinadas patologias sociais e psicológicas que atingem a todos, até mesmo àqueles que desejam uma crítica consciente e distanciada do processo. Mas o fato é que não há quem não se sinta preso e, ao mesmo tempo, ameaçado pelo processo. Um processo que esmaga e controla e que molda a conduta e a consciência individual, a Mercadoria se torna um bem ontologicamente propício à existência humana.
Por essa razão, a de submeter-se à sociedade das mercadorias, os "trabalhadores" submetem-se às mais terríveis agruras, humilhações, desterros, indiferenças, ódios, rancores, esquecimentos para se colocarem à frente da mercadoria. A Máquina-Trabalho ainda nos esmaga.
Com tantos subterfúgios à realidade e com tantas fragmentações sociais, não é de se estranhar o fato de haver um número cada vez crescente de doenças da mente e da consciência. Sem o trabalho que gera o valor para as mercadorias, o sistema tenta manter-se intacto, mas no seu interior, os sintomas são de grande excitação, de profunda desorientação, de insegurança atroz e de inúmeras relações que perdem o sentido.
Nas escolas, nas igrejas, nos sindicatos, nos programas de debates da TV, nas empresas, nas instituições públicas, nas vizinhanças, nos prostíbulos e nas vias públicas, os homens e as mulheres ainda vivem o mundo das Repúblicas do Trabalho, engessados pela Máquina-Trabalho e suas concepções jurídicas. Não são capazes, ainda, de vislumbrar seu próprio futuro sem o Trabalho e sem as relações indigestas por meio das Mercadorias.
Paradoxalmente, há um mal-estar que permeia os ares, mas o sono e a vida lúdica proporcionada pela sociedade das mercadorias, ainda nos entorpece a ponto de construirmos em perspectiva, grandes sistemas que contenham, em sua essência, o modelo social do Trabalho e das Mercadorias. Ainda ansiamos por uma sociedade da qual, há 20 anos atrás – abominávamos com todas as nossas forças e com todos os nossos deuses de plantão.
Haverá paz para o homem?
O pensamento jamais encontrará a sua paz. Poderá viver em um mundo sem violência, mas sem paz, nunca. Não haverá, enquanto houver a progressão infinita do pensamento no processo dialético, que em si e em sua historicidade, está a construir novas teses e sínteses. A paz dos montes será possível.
Nesse sentido, analogamente, o valor nunca terá um porto seguro para descansar. Seremos arquitetos e construtores do valor como peso nas relações humanas, pois é da natureza da linguagem também designar as coisas pelo valor. Uma certa sensação de paz se dá quando o conceito subordina todos ao seu próprio ditame, isto é, quando enfim todos se convencem de que aquele valor é comum a todos. O eterno conflito entre o indivíduo e o coletivo permanecerá e a paz desejada para o valor será sempre um sentido a ser alcançado, ora dirimido ora exacerbado ao extremo.
Nossas guerras pela mercadoria perderão a razão quando não houver o valor a ser dado a elas, quando as máquinas nos substituirão e quando as grandes estruturas não tiverem mais a quem explorar. Mas haverá, por certo, novas formas de guerra, lutaremos por outros valores, como sempre o fizemos em nossa história. Haverá a guerra pela resistência em manter um sistema carcomido pela obsolescência, pela estultice dos condutores e agentes do processo e também pela resistência dos mais fracos, dos pobres e dos que estão visceralmente entendidos na sociedade da Máquina-Trabalho.
A paz será um movimento em torno à não-violência. Dentre todas as probabilidades dadas ao intelecto humano, uma delas é a não-violência. Com ela, podemos crer que há a possibilidade de não violentarmos o OUTRO, nas formas das quais estamos acostumados. A violência dos sistemas deverá ser freada pelos movimentos de não-violência, caracterizados pela relação entre o valor e a organização social.
As mercadorias provavelmente perderão seu valor de troca em virtude do fim do trabalho. Dessa forma, as mercadorias se transformarão em alguma outra coisa, em alguma categoria da qual a história será testemunha em sua determinação. As coisas serão colocadas de lado e é possível que o OUTRO se torne o VERDADEIRO FATOR DE SOCIALIZAÇÃO DA HUMANIDADE PARA A PROPRIA HUMANIDADE. Seremos obrigados a olharmos uns para os outros e decidirmos sobre nossas escolhas, baseadas em liberdade, mais que em esclarecimento.
Se insistirmos na idéia mágica em privilegiar a MERCADORIA, como forma de SOCIALIZAÇÃO, construiremos nossa própria ruína. Se permanecermos redondamente certos de que o Trabalho-Abstrato é a nossa única estrada existencial, então, estaremos fadados ao aniquilamento.
Caberá às nossas escolhas, a medida de nossos valores para se realizarem na concretização de nossas relações. Tudo depende de nós...
Um futuro ameaçado
A mercadoria é a coisa que carrega um determinado valor. No limiar do sistema de produção de coisas carregadas de valor (a mercadoria), a natureza se ressente imensamente. Todas as formas de política de desenvolvimento, cinicamente prevêem um gerenciamento mais "equilibrado" dos recursos. Essas políticas pretendem nada mais do que equacionar um dilema: produzir em grande escala, preservar a natureza e as mercadorias, ampliar mercados, reduzir gastos, privatizar estados, romper as ligações sociais e continuar com o sistema, mesmo que o trabalho humano seja, gradativamente substituído pela tecnologia e pela ciência.
Muitos estudos sobre o desenvolvimento sustentável referem-se aos modelos de economia que devem ser repensados pelos estados nacionais atuais. O sistema de produção de mercadorias, em seu atual estágio, ainda imagina um mundo produtor de mercadorias em grande escala, mas provavelmente para um grupo reduzido de consumidores. Os estados ainda são concebidos para uma legislação e um controle da sociedade da Máquina-Trabalho.
Outros tantos estudos propõem uma mudança nas perspectivas de produção, na distribuição das riquezas e no desenvolvimento com sustentabilidade e equilíbrio dos recursos, com um determinado controle social dos recursos naturais.
No entanto, a grande maioria dos estudos ainda privilegia a MERCADORIA como o fator de socialização entre as sociedades. Garantir o acesso ao processo de produção de MERCADORIAS de forma planetária, em condições mínimas de empregabilidade e tecnologia programada para que as sociedades pobres possam dela usufruir, gerenciar recursos renováveis e distribuir renda para o acesso à Mercadoria.
Mas enquanto as sociedades e os estados derem precedência à MERCADORIA, toda relação com a natureza estará ameaçada e toda a espécie também estará. Enquanto não houver um movimento que garanta a SOCIEALIZAÇÃO DAS PESSOAS antes de qualquer decisão econômica, mercadológica, a vida não terá sentido. O que terá sentido, então, para nós, nada mais será do que a MERCADORIA. Se ela estiver no topo das relações sociais, o TRABALHO como força produtiva de bens de troca estará no princípio em si mesmo que impulsionará a sociedade para a sua derrocada. Pois enquanto acreditarmos que o acesso à MERCADORIA se dá pelo "salário" e pelo TRABALHO na sua determinação abstrata, o mundo não verá paz. Mas mesmo que o mundo caminhe para o fim do TRABALHO, na sociedade da MÁQUINA-TRABALHO, ainda será necessário romper os grilhões que nos aprisionam à MERCADORIA.
O homem na sua forma e determinação é o elo entre todos. O OUTRO só tem sentido na relação e não na MERCADORIA.
Brasil, Abril de 2003
Referências
1. HORKHEIMER M. & ADORNO T.W. O Conceito de Esclarecimento. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1997, p. 40.
2. KURZ, Robert. A honra perdida do trabalho. Grupo Krisis.
3. FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Vol.XXI. Rio de Janeiro: Imago, sd, pp. 84-85, 100, 116, 145.
4. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, 384 p.